O atum comeu o mexilhão
Qual a relação entre a lata de atum portuguesa que, há uns meses, inopinadamente apareceu na ração de sobrevivência dos soldados da Rússia (fazia parte de um lote doado à Ucrânia) e as latas de atum com alarmes nas prateleiras dos nossos supermercados? É uma relação causal. No final do século XX, ficou famosa a fórmula - o bater de asas de uma borboleta pode provocar um tremor de terra do outro lado do mundo. Agora, no início do século XXI, pode ficar célebre o dito "como um enlatado europeu oferecido a Kiev provocou a maior onda de fome e miséria em todo o velho continente". Isso significa que são os nossos apoios ao povo ucraniano que estão a provocar esta inflação canibal?
Vejamos: a mariposa e a catástrofe natural da teoria do caos também são simbólicos - não concretos. Vamos por partes. A gestão da covid rebentou a economia e originou a maior transferência de riqueza da história da humanidade (os mais ricos mais ricos do que nunca e os pobres mais pobres) - desde logo porque era necessário repor as perdas da crise do subprime de 2008. Com o coronavírus, fecharam-se negócios, faliram-se pequenas e médias empresas, fermentou-se o desemprego. Nessa altura, quem ousasse constatar o óbvio e que o maior indicador de saúde pública é o PIB, logo era insultado e difamado, de perigoso negacionista para baixo. A economia logo se vê, bradava o poder, e foi então que a inflação começou a carcomer. Durante 2020 e 2021, as impressoras ocidentais regurgitaram novas notas a granel, o balanço do banco central europeu cresceu 4 biliões e, aí sim, começou o galope inflacionista. Ou seja - ele é, em primeiro lugar, resultado directo da sociopatia das cúpulas.
Entre o final de 2019 e Fevereiro de 2022, algumas matérias-primas chegaram a subir mais de 200% (eg madeira). O gás natural aumentou 101%, o petróleo disparou 57%, alguns cereais mais de 100%, por exemplo. Com a guerra, as sanções a castigarem duramente os europeus, o euro-patrocínio do conflito (quer pagando caro à Rússia petróleo e gás, quer bancando a Ucrânia sem filtros), tudo piorou e somos nós, portugueses e alemães, espanhóis e franceses, que pagaremos a factura desta loucura por procuração e sem fim à vista. Agora, os preços batem no tecto - oito mil milhões de euros foi quanto já deixámos no supermercado até setembro deste ano, um aumento de 7,7% face ao mesmo período de 2021. Isto já para não falar dos custos da energia.
Enfim, a gestão da covid, somada às sanções suicidas, multiplicada pelos apoios à Ucrânia (muitos vão parar à corrupção, outros - como armas - acabam em Moscovo), está a arrasar-nos. Por isso se pode dizer que uma lata de atum doada ao exército ucraniano que acabou no estômago dos combatentes russos provocou não um tremor de terra do outro lado do mundo mas fome e atum em lata lacrado em Portugal ou na Polónia. Pelo meio, os governos fecham os olhos aos lucros obscenos das grandes companhias (supermercados incluídos e sem que salários cresçam), insistem nesta estratégia de drone kamizake e cumprem o sonho da Dra. Jonet (proteína só em dias de festa). Vá. Sosseguem. Os 125 euros permitem comer duas latas de Thunnus thynnus até Dezembro. Depois, logo se vê, não é?
Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia