O ativismo digital num quadro de incertezas
Participei esta semana num webinar sobre "Internet e Geopolítica". A pergunta no centro dos debates era muito direta: uma internet global, universal e aberta é possível?
A pergunta provinha das associações da sociedade civil que militam pela liberdade digital. E que seguem a linha das Nações Unidas: em junho de 2020, António Guterres propôs um Roteiro para a Cooperação Digital, com o objetivo de se conseguir que no final da década cada pessoa possa aceder à internet a um custo mínimo e sem entraves.
A realidade é muito distinta. Neste momento, existem dois universos digitais paralelos. O internacional, essencialmente norte-americano, construído à volta de plataformas que fazem parte do nosso quotidiano. E o chinês, numa reprodução taco a taco da constelação ocidental. Nós podemos inscrever-nos nas plataformas chinesas, mas os residentes na China não têm acesso às redes internacionais, que estão bloqueadas por Beijing. Logo, a resposta à pergunta central só pode ser negativa. O acesso à internet é, nos regimes autocráticos, limitado ou proibido, por razões políticas.
Para além dos apelos ao multilateralismo, das novas "rotas da seda" e dos progressos em matéria de comunicações e transportes, a verdade é que estamos a caminhar de modo acelerado para uma fase histórica de fragmentação e rivalidades declaradas entre blocos de países. Na área digital, essa competição centra-se nas questões da inteligência artificial, das nuvens de dados, da cibersegurança, da espionagem, das narrativas políticas concorrentes e também da vigilância sobre os cidadãos.
Os detentores do poder, seja ele qual for, utilizam cada vez mais as redes sociais para influenciar a opinião pública, manipular o discurso político e criar uma interpretação da realidade que lhes seja favorável. Donald Trump foi exímio nessa arte. Hoje, Narendra Modi é o dirigente no ativo que é seguido pelo maior número de pessoas, cerca de 175 milhões. Modi sabe que as imagens atraem atenção se forem intuitivas, dinâmicas, coloridas e empáticas. Em Portugal, António Costa tem à volta de 266 mil seguidores no Twitter. Não será muito, mas no nosso país o que continua a pesar é a presença frequente nos canais televisivos de sinal aberto. Já a conta oficial no Twitter do presidente Zelensky atinge 6,2 milhões de subscritores. O líder ucraniano tem demonstrado uma notável capacidade de comunicação através dos meios digitais.
A título de curiosidade, note-se que Cristiano Ronaldo tem cerca de 445 milhões de seguidores no Instagram, Lionel Messi 329 milhões e Khaby Lame, um influenciador italiano de origem africana, é seguido por 136 milhões através do TikTok. O que aconteceria se um deles se lançasse no ativismo político?
Já no respeitante ao confronto com a Rússia, parece-me evidente que irá contribuir para o aprofundamento das fraturas geopolíticas. Ninguém sabe como poderá evoluir a guerra de agressão contra a Ucrânia ou a enorme crise despoletada entre a Rússia, os Estados Unidos e os vários países da NATO. É, todavia, claro que continuamos numa rota de escalada, num contexto de grande complexidade e excecionalmente preocupante. Por um lado, não se pode aceitar que se viole sistematicamente a ordem internacional, tal como definida na Carta das Nações Unidas, nem que se desrespeite impunemente as instituições que são os pilares da paz e da segurança, como por exemplo o Tribunal Internacional de Justiça. Nem aceitar que a lei internacional, base das relações entre os Estados, deixe se aplicar às grandes potências, dando-se antes a primazia aos seus interesses geoestratégicos, na velha conceção da força como alavanca principal do poder. Por outro lado, existe um risco muito sério de uma nova confrontação global e em alta escala.
Neste contexto, a minha sugestão é simples: a sociedade civil pode utilizar as plataformas digitais para fazer pender a balança para o lado do direito, da moderação e da paz. E começar pela promoção de acordos internacionais de não-agressão cibernética a infraestruturas críticas, essenciais para o quotidiano de cada cidadão.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU