O assassínio em família numa peça de Albert Camus

Publicado a
Atualizado a

Marta e A Mãe gerem um hotelzinho, algures "na Europa triste"; no rio próximo e com a cumplicidade silenciosa do Velho Empregado, ainda mais inquietante do que elas, afogam clientes que roubam, para, com odinheiro, rumarem a Sul, em busca de boa vida, com sol e mar. Uma vítima será Jan, o "Filho Pródigo", incapaz de identificar-se de imediato e não reconhecido, quando volta para redimir-se de as ter abandonado. Nesse trágico absurdo culmina Equívoco, de Albert Camus (Le Malentendu, 1944), que a Karnart estreia hoje, em Lisboa, na sua sede (às 22.00, até dia 19), num espectáculo de Luís Castro (concepção e direcção), com Mónica Garcês, Fernanda Neves, Afonso de Melo, Bibi Perestrelo e Vera Alves .

É a segunda parte duma trilogia com a família por tema (Trifami), iniciada em Yerma de García Lorca. Tal projecto da Karnart - que visa fazer "reflectir sobre estas questões", quando "se discutem direitos relacionados com novas formas de organização familiar" -, co-produzido com o Teatro Nacional D. Maria II, conclui-se em trabalho que funde esses dois (estreia marcada para o Rossio a 14 de Julho). Face à temática em causa e considerando o assassínio do marido em Yerma, como o do filho e irmão em Equívoco, pergunta-se a Luís Castro se vê a estrutura familiar como lugar de morte. Para o ainda tradutor e dramaturgista da peça, "a família tradicional também é um lugar de morte e não é exemplo de forma ideal e única de família. Pode ser, mas não é necessariamente, porque há pais a matarem filhos, há crianças abandonadas e afogadas nos rios e etc."Como se sabe.

Entretanto, ao contrário de Yerma, exemplo vincado do conceito de perfinst (performance+instalação) que Castro desenvolve, Equívoco dispensa a componente instalação. Nem por isso deixa de emanar grande estranheza da estética adoptada (influências orientais, do teatro de sombras e dos nipónicos nô e buthô, mas também do expressionismo), movimento ritualista, fatos vistosos, caracterização e adereços, um quase monocromatismo (base verde), sombras agigantadas por projectores baixos de luz frouxa, toda uma criação cénica distanciada do texto além da encenação, a intervenção plástica (Vel'z), os figurinos (Fernanda Ramos), a luz e o som (Razguzz) - banda sonora a cruzar música contemporânea, canto gregoriano, sons concretos, ruídos... Segundo o encenador, "o verde surgiu logo na leitura inicial da peça, associado a águas verdes estagnadas, dos limos onde os corpos apodrecem. O amarelo da parede apareceu mais tarde." Entretanto, prossegue: "Quando comecei a ver os actores alinhados no eixo central, criaram-se, naturalmente, entradas e saídas próximas do teatro oriental. Foi o próprio processo que nos começou a desenhar essas linhas, que depois acentuei e aperfeiçoei. A grande cruz no chão também se foi definindo assim e, entretanto, o Vel'z ia criando o lado plástico."

Na dramaturgia, Luís Castro, que diz ter-se preocupado mais "com a beleza das cenas" do que "com a sequência narrativa", crê que, apesar de alguns dos cortes que operou no texto , "as coisas acabam por tornar-se claras e as pessoas fazem a sua leitura".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt