O arquiteto que põe o mundo inteiro nos objetos que desenha para nós vivermos
Fica a promessa de conhecer o espaço na Infante Santo onde Miguel Saraiva passa mais de 12 horas por dia, por onde nos guiaria depois do brunch no Oui Mais Non, no Tivoli Forum. Mas enquanto os confinamentos só permitem encontros à distância, resta-me o que consigo ver do ateliê - o único português entre os 100 maiores de arquitetura do mundo e onde não deixa de ir diariamente - através do ecrã.
O sorriso aberto e a boa conversa cortam quilómetros e em menos de nada vemos Nova Iorque pelos olhos do Miguel de 14 anos, absorvemos a imensidão de Paris e o legado de Shakespeare, a praia urbana de Copacabana através da sensibilidade de um adolescente que graças ao emprego do pai, diretor-geral da TAP, lhe deu (e ao irmão, mais velho) uma experiência bem diferente da que vivia a maioria dos miúdos no arranque dos anos 80. "Deu-nos mundo numa época em que se saía pouco. Além do prazer, as viagens eram uma espécie de ferramenta pedagógica, isso despertou-me, e acredito que vem daí a minha criatividade", acaba por assumir, mesmo que a resposta pronta para a razão de ter seguido arquitetura seja o empurrão dos pais - da mãe, que lhe viu certas características mais ligadas às artes -, coroado pela motivação de ter tido a melhor nota do curso logo no primeiro ano do cadeirão Projeto. "Foi um trampolim e viciei-me. Sou obstinado em fazer tudo muito bem e depois a arquitetura ligava bem comigo, na medida em que é exercida ao ar livre, exige contacto com muitas pessoas, exposição pública, mas também precisa de liberdade e criatividade."
A exigência de perfeição não é difícil de ler nele. Há 25 anos abre e fecha o ateliê, onde às 07.30 já está sentado a organizar, a refletir e a desenhar. Os traços geram formas que se fazem objetos da vida da cidade ou da paisagem onde nascem, que "são para ser vividos", vinca. É uma forma de arte diferente, que não se limita a cumprir o papel estético mas exige, além desse, qualidade para dar conforto a quem dela usufrui. Cumprir o seu papel, integrando-se como se sempre ali tivesse estado - seja um hospital, como o Beatriz Ângelo, em Loures, uma torre luxuosa, como a Infinity Tower, em Campolide, a nova sede da PJ, em Lisboa, ou um projeto de natureza, como a Comporta, entre centenas de projetos com a sua assinatura.
Como se consegue adaptar a criatividade a projetos tão distintos? "Só é possível com open mind, porque são objetos muito diferentes, em meios muito diferentes. Mas tiveram programas-base bem definidos e sabendo exatamente o que se pretende é mais fácil responder com programas funcionais, inseridos no ambiente e com respeito pela envolvente. Isto só é possível com um grande grau de especialização." Implica conhecer necessidades, funcionalidades. Exemplifica com o Egas Moniz e o Instituto de Medicina Tropical anexo, nascido numa altura em que tinha de cumprir uma necessidade específica de uma população que se estendia além do Portugal de hoje, para África.
Viajar, que continua a fazer parte das rotinas de Miguel Saraiva - saía duas a três vezes por mês até o mais recente confinamento o impedir -, tem nisto um papel primordial. "Tem a vantagem de me afastar dos projetos em Portugal e voltar com uma visão diferente." Além de ter deixado "velhos amigos pelo mundo", reconhece a necessidade de contactar com pessoas de partes diferentes, de outras culturas, e a curiosidade de ver o resultado de realidades que conheceu passado uma década. O seu maior fascínio é a Ásia Central, incluindo países como o Cazaquistão, onde deixou a sua marca, por exemplo na sede do Forte Bank, em Astana, onde tem trabalhos há uma década. "É uma área muito desconhecida e uma cultura distinta quer da Ásia quer na Europa, com um povo culturalmente muito interessante, culto, organizado e que ainda mantém a hierarquia da idade. Sempre que lá chego, oiço o meu avô a falar." E oferece desafios incríveis para um arquiteto, ou não fosse o clima oposto ao nosso e com amplitudes térmicas que num local pode ir dos 40 ºC aos -40 ºC. "Em termos técnicos, é uma aprendizagem. Há fachadas construídas com tubos de água quente a passar por dentro da parede, dos caixilhos de alumínio das janelas para não deixar acumular neve e não aumentar o peso. Historicamente, têm soluções com técnicas muito avançadas e com a aproximação à Europa e aos EUA ainda ganharam tecnologia."
O tema entusiasma-o - os objetos, naturalmente, como o engenho essencial para os implantar nos locais certos, com as formas certas e cumprindo as suas funções com a maior qualidade. Mas também o cenário que traz vívido à conversa. "A criatividade reflete esse impacto da geografia em nós. O impacto da estepe é uma sensação única, é como ver o mar a partir da Ericeira para o infinito. É sempre a direito a perder de vista, e isso molda também o nosso pensamento, a arquitetura sofre adaptações, o desenho cria cenários diferentes." Tem a vantagem de ali ter um dos mais de dez ateliês que abriu fora de Portugal, recorrendo a talento local - "dialogo frequentemente com arquitetos locais, isso é fundamental para o nosso enquadramento e uma forma de crescermos intelectualmente".
Repete a importância das equipas, a mais-valia das 120 pessoas que com ele desenvolvem trabalho e a quem se dedica. "Começo o dia a desenhar, sou diretor criativo, no fim do mês viro empresário e ainda faço muito relações públicas. Mas também dou aulas aos meus arquitetos, gosto que a Saraiva+Associados seja um ateliê-escola e estou muito disponível para ensinar. É uma mais-valia para todos. Esta cadeia de valor é que vai perpetuar a S+A para além da minha presença."
A continuidade é um tema que traz muito presente. Mesmo porque a maioria das empresas por cá ou se transformam em negócios de família ou acabam por perecer quando quem as construiu sai. E Miguel não está disposto a aceitar nenhuma das duas soluções, mesmo que daqui a muito tempo. "O tempo é o maior inimigo desta profissão, tenho de somar pessoas com muita qualidade ao meu trabalho, que envolve determinados objetos para usos totalmente diferentes." Sublinha uma vez mais que são trabalhos que movem toda uma equipa. "Tenho feito coisas boas, mas posso fazer mais e melhor. Veremos se tenho capacidade para fazer e para motivar quem está comigo."
Esse é também um projeto em que trabalha diariamente - mesmo que empurre a sucessão para longe.
"Ainda não me sentiria à vontade para entregar a Saraiva+Associados a outra pessoa - não procurei ainda o suficiente um sucessor e sinto-me à vontade para mais dez anos de atividade muito intensa. Mesmo porque ainda não atingi o nível que me impus. Tenho ainda claramente uma década muito focada na qualidade - até agora tive de somar outros atributos e agora quero que a qualidade do desenho e do serviço seja o meu foco total."
A maioria dos desafios a que responde são contratações privadas - mesmo as que acabam por ser obras públicas têm pela frente uma parceria público-privada, uma concessionária. E a maior dificuldade disso é facilmente identificada: lidar com quem o contrata e aplacar os desejos constantes de dar uma ideia, acrescentar um ponto, ir adicionando elementos que só podem resultar num "monstro".
Assume que carrega grandes frustrações: "Coisas que pensei estar a desenhar bem e que correram mal por erros meus ou interferência externa." Acontece que quem contrata um ateliê como a Saraiva + Associados, ainda que o faça porque lhe reconhece o valor de quem está no topo - basta ver que a S+A ocupa a posição 87 da World Architecture 100 e fatura cerca de 15 milhões de euros por ano, contando com uma carteira de projetos em pipeline de 42 milhões - tem muitas vezes a tentação de interferir no projeto. "Há imensa interferência, o grande desafio desta disciplina é mesmo manter a independência intelectual e a qualidade perante o desafio económico - porque comprar um projeto não é comprar o arquiteto.
Conseguir proteger de todos os agentes externos não perdendo personalidade. Não comprometer o objeto e o seu objetivo é essencial; há agentes económicos, há legislação e todas as entidades que aprovam têm opiniões profundas sobre o desenho. A intervenção é constante, até ao último dente do monstro", ri-se.
Quero saber se deixou algum desenho por fazer ou se tem pena de nem todos os que fez terem chegado a materializar-se. Não demora a identificá-los. "Um projeto para um teatro e escola de ballet no Cazaquistão. E o concurso para a sede da Farfetch." E porque reconhece vantagens à obra pública - mais duradoura, mais usufruída, mais livre de interferência - e é um fã confesso das conquistas de que os portugueses foram capazes durante séculos, "o Museu das Descobertas seria uma cereja no topo do bolo".
"Sou um apaixonado pela expansão portuguesa, leio imenso sobre o tema e sei que podia trazer mais-valia não apenas no desenho do edifício mas até no conteúdo - ainda mais tendo o Henrique Cayate [sócio fundador da S+A concept designing] comigo." Lamenta que se tenha "politizado uma peça que é arte" - o que inevitavelmente resulta na morte do objeto. Como parece indicar a queda no vazio da promessa eleitoral do presidente da Câmara de Lisboa para A Viagem - nome que Medina adiantou para resolver as polémicas inflamadas quando se começou a falar em homenagear a geração de grandes navegadores - que nunca viu a luz do dia. "Como é que é possível ter um ativo destes, uma experiência de cinco séculos, e não a exploramos culturalmente, não a darmos a conhecer ao mundo? Estas viagens têm valor proporcional ao da ida do homem à Lua."
Miguel Saraiva tem, ainda assim, muito com que se ocupar. "Estou a desenhar o aeroporto Montijo - é uma especialização do ateliê e a Vinci possibilitou-nos fazer esse desenvolvimento", explica o responsável pelo hub internacional do aeroporto de Guarulhos, São Paulo. Por cá, lamenta que já se tenha gasto mais em projetos de aeroportos do que a concretizar uma necessidade óbvia e que podia devolver alguma qualidade de vida a Lisboa, além de ser uma mais-valia para toda a região, trazer conforto e proporcionar uma melhor experiência a quem viaja. "É o primeiro cartão-de-visita que temos ao chegar por avião", sublinha, para justificar que o aeroporto precisa de ser um equipamento bem planeado e concretizado, um local em que se flua, que não acrescente tensão mas antes tire carga às pessoas, assegurada pela qualidade e pelo conforto.
Entre muitos outros, a S+A tem em mãos o "desafio enorme" do desenvolvimento urbano de parte da Comporta. "Quero focar-me muito neles, ainda mais hoje que posso contar com uma equipa muito mais sénior e que pode ajudar a atingir esses objetivos. Eu muitas vezes levo a medalha, mas ela é partilhada desde o primeiro momento com os meus arquitetos." E esse momento de reconhecimento é mais válido do que ver um projeto ser vivido por aqueles para quem foi desenhado e construído? "Um prémio é um momento de reconhecimento individual muito importante para a minha atividade, não o desprezo de todo. Mas o elogio maior que posso ter é a boa utilização de um espaço que desenhei. É extraordinariamente gratificante ver que responde às necessidades, que as pessoas se sentem bem ali sem saberem bem porquê."
É talvez também porque será isso que ficará dele, será isso que os filhos - uma rapariga de 4 anos, um rapaz de 2 e outro ainda com 7 meses -, qualquer que seja a vida que escolham, vão apontar e sentir orgulho no pai. "Gostaria de lhes dar uma belíssima educação, de lhes proporcionar uma belíssima formação, para que tenham as ferramentas para crescerem com o seu próprio ADN e serem bons cidadãos. Se vão voar ou não, é com eles, só tenho a preocupação de garantir que têm tudo para serem felizes." Para alguém que nunca pensara ser pai, hoje o pequeno-almoço com os miúdos é "o melhor momento do dia". A paternidade transformou-o: "Fez-me melhor." E esse melhor de si quer ainda partilhar com a arquitetura e com a cidade.