"O anterior governo iraniano pôs os ovos todos na cesta do acordo nuclear"
Para a França e os EUA o Irão violou o acordo nuclear com o recente lançamento do foguetão Simorgh, e um diplomata alemão disse que pode ter servido para testar mísseis balísticos [que podem ser dotados de armas nucleares]. O que tem a dizer?
O acordo nuclear [formalmente, Plano de ação conjunto global ou JCPOA na sigla inglesa] concentra-se apenas na questão nuclear e não impede o Irão de desenvolver as capacidades militares de defesa, incluindo mísseis ou mísseis balísticos. Na resolução 2231 [das Nações Unidas] há uma referência sobre experiências de lançamentos de mísseis, incluindo os balísticos, de que não devem ter fins nucleares. Essa é a única referência, mas o Irão está a fazer estas experiências apenas com propósitos defensivos. Isto é um jogo de culpas iniciado desde que recomeçámos as negociações sobre o regresso à total aplicação do acordo nuclear, há propaganda para fazer pressão sobre o Irão.
As negociações recomeçaram em Viena esta semana. Qual é a meta do Irão?
Tivemos uma experiência, que foi má, o que significa que não temos qualquer confiança no outro lado. E no sentido de ganhá-la, através de medidas de criação de confiança, o Irão pede três requisitos principais para que todas as partes se sintam totalmente satisfeitas. A primeira é que a total aplicação do acordo conduza ao levantamento de todas as sanções relacionadas com o JCPOA. Isso inclui sanções levantadas após a aplicação do acordo e que depois foram impostas pelo governo de Obama e mais tarde ampliadas pela administração Trump, seja sobre o tema nuclear ou de outros tópicos, terrorismo, direitos humanos, o que for, mas relacionados com o JCPOA. E como não temos confiança no outro lado, queremos uma garantia de que os EUA não vão outra vez violar as suas obrigações e que os europeus sejam sinceros na aplicação dos compromissos e que não fiquem apenas a olhar para o que os EUA fazem. E a terceira expectativa do Irão é que deve haver uma verificação do levantamento das sanções para rapidamente sentir-se o impacto do levantamento real das sanções em termos de facilitar as transações entre o Irão e o sistema bancário internacional e o Irão poder rapidamente vender o petróleo no mercado internacional e receber o proveito no sistema financeiro. A administração Biden mostrou a sua disponibilidade para voltar ao acordo, ao que o Irão se congratulou. Quando o novo governo iraniano tomou posse em junho já tinha havido seis rondas de negociações. Nessas rondas, o Irão foi claro ao dizer o que queria das outras partes. Mas foram de facto as outras partes que não quiseram compreender que a política de pressão máxima e a utilização de sanções não iriam resultar. Se fosse resultar teria acontecido durante a administração Trump. Até Biden disse durante a campanha eleitoral que a pressão máxima estava condenada ao fracasso. Fizemos progressos assinaláveis até junho, mas foi insuficiente para alcançarmos um acordo. Com a formação do novo governo do presidente Raisi, desde o início o presidente e o MNE disseram "somos um governo pragmático, queremos resultados que salvaguardem os interesses do povo iraniano". E que interesse pode de forma rápida beneficiar o povo? O levantamento das sanções. Desde junho houve duas rondas de negociações, estamos a meio da oitava. A boa notícia é que todas as partes concordaram em criar um documento conjunto. O que podemos ouvir dos dois lados é que, apesar de o processo ser muito lento, está a avançar e há esperança de um acordo final. A partir desse ponto, os EUA poderão ser outra vez parte do JCPOA.
Citaçãocitacao"O Irão quer uma relação equilibrada com a Europa e nesse sentido desenvolver relações com alguns países além dos dois ou três maiores, e entre esses os países do sul da Europa, em especial no campo económico."
Quanto mais podem demorar as negociações?
O lado norte-americano diz que a janela de oportunidade está a fechar-se, mas nós sabemos que isso faz parte da negociação para pôr pressão. Precisamos de chegar ao fim, embora sem precipitações porque precisamos de ter a certeza de que os nossos interesses e expectativas estarão refletidos num documento de regresso ao JCPOA, porque não estamos a criar um novo, nem a acrescentar nem a retirar. O que estamos a negociar é um entendimento em como voltar à aplicação do acordo. Mas prolongar este processo não beneficia nenhuma das partes.
Quais são as diferenças do novo governo em relação ao anterior?
Em relação à política externa, o governo é a parte executiva das políticas decididas num contexto mais amplo, portanto não há uma mudança ou diferença específica em relação ao anterior. A maior diferença talvez seja a de metodologia: o anterior governo confiava nos governos ocidentais, entrou no acordo nuclear e pôs todos os ovos na cesta do JCPOA. Creio que este governo vá ter uma abordagem equilibrada. Porquê? É importante para nós aplicar-se o acordo, ter uma boa e crescente relação com a Europa, mas também temos de ter uma boa relação com os nossos vizinhos. Isso é uma prioridade.
O que tem a dizer sobre a caracterização de "radical" dada pelo Ocidente ao governo?
Nós não temos esta terminologia na política interna, radical, conservador ou reformista. Há uma diferença de abordagens, mas no fim de contas o governo está enquadrado em instituições como o conselho de segurança nacional, ou em cooperação com o parlamento.
Citaçãocitacao"Não temos qualquer confiança no outro lado [pelo que] o Irão pede três requisitos (...) levantamento de todas as sanções e sua verificação, e uma garantia de que os EUA não vão violar as suas obrigações."
Mencionou a prioridade da boa relação regional. Quais são os objetivos do Irão em relação ao Iraque?
Desde a ocupação dos EUA o país não teve paz nem tranquilidade. A presença dos EUA só contribuiu para o crescimento do terrorismo, o chamado Estado Islâmico foi criado e espalhou-se na região. E foi o Irão quem reagiu de forma positiva ao pedido do governo do Iraque quando todo o Curdistão estava prestes a ser derrotado e até estavam prestes a entrar em Bagdad. Foi o major Soleimani quem defendeu o Iraque, e o Irão quem ajudou o Iraque e mais tarde a Síria a evitar que estes países fossem derrotados pelos grupos terroristas. Quase todos os grupos terroristas foram erradicados, embora a mentalidade se mantenha. Para nós a segurança e estabilidade no Iraque é muito importante porque está relacionada com a nossa estabilidade, bem como a de toda a região. Temos uma boa relação com os diferentes grupos religiosos e étnicos e queremos trabalhar em conjunto para que em breve o novo parlamento esteja em funcionamento, bem como o governo, baseados no voto dos iraquianos. Estamos a trabalhar de forma muito estreita com o governo do Iraque sobre as consequências legais do assassínio do major-general Soleimani porque também altas patentes militares iraquianas foram assassinadas. Queremos levar este assunto à justiça internacional.
Como vê o Afeganistão?
O que aconteceu ao fim de 20 anos de ocupação? Morreram dezenas de milhares de civis e os americanos saíram de forma irresponsável e possivelmente com acordos secretos com os talibãs. A construção do Estado falhou e centenas de milhares de técnicos e de pessoas com conhecimentos fugiram do país com medo dos talibãs. Estes dizem que são diferentes dos de há 20 anos, mas a situação não está a melhorar. Pelo menos 500 mil refugiados afegãos entraram no Irão, um país que recebeu 3,5 milhões de afegãos nas últimas quatro décadas, só que agora estamos sob pressão devido à difícil situação económica em resultado das sanções e da pandemia. Para nós, que nem os reconhecemos como governo, não é importante quem está a governar no país, mas o povo do Afeganistão é muito importante. Como no Iraque, a segurança e estabilidade no Afeganistão reflete-se no Irão. Para nós todos os grupos étnicos e religiosos devem ter uma parte do poder para que sejam atendidos os direitos das minorias, dos grupos religiosos, das crianças à educação, da livre participação das mulheres. Em resultado do regresso dos talibãs ao poder enfrentamos três problemas principais: a vaga de refugiados; o perigo do terrorismo se espalhar, com o chamado Daesh Khorasan; e o contrabando de narcóticos.
Há esperança no Iémen?
O Iémen é em tudo uma tragédia, milhares de civis são mortos, a situação humana é trágica, quase todas as infraestruturas de saúde e educação são destruídas pela alegada coligação liderada pelos sauditas e tudo isto está a tornar-se num pesadelo para os sauditas. Espero que decidam o quanto antes retirar-se do Iémen e deixem aos iemenitas a resolução dos seus problemas. Podemos ter uma boa relação com os houthis mas não temos qualquer impacto nas suas decisões.
O que poderá resolver o impasse no Líbano?
É muito difícil. A experiência regional e no interior do país demonstra que qualquer intervenção exterior está condenada. As políticas internas terão de ser resolvidas pelos libaneses porque no passado já demonstraram essa capacidade. Mas devido às sanções ilegais dos EUA, de países europeus, da pressão do regime israelita e com a explosão do porto de Beirute a vida está muito difícil. Pelo menos agora há um primeiro-ministro e um governo. Temos uma boa relação, não só com os xiitas, mas com os outros grupos, pelo que o Irão estará sempre disposto a ajudar.
De que forma as relações Irão-Portugal podem fortalecer-se?
Irão e Portugal têm relações há mais de 500 anos. Esta é uma boa base para desenvolver uma relação muito positiva e amigável. A nossa embaixada tem feito todos os esforços nesse sentido. Temos uma boa relação com a comunidade empresarial, e encontrámos áreas onde as trocas bilaterais podem aprofundar-se. Temos um conselho empresarial conjunto que deve ser relançado, estamos a trabalhar com o setor privado de ambos os países. Fiz viagens por Portugal e encontrei boas oportunidades. A liderar a cooperação entre cidades estão as cidades geminadas do Porto e Isfahan. Ao nível político, os ministros dos Negócios Estrangeiros encontraram-se em Nova Iorque, durante a assembleia geral da ONU. E temos consultas políticas periódicas, o assistente do ministro esteve em Lisboa em novembro. Uma delegação parlamentar veio a Lisboa em outubro. O que deixamos claro a todos os amigos portugueses durante estas interações é que para o Irão a Europa não se limita a dois ou três países. O Irão quer uma relação equilibrada com a Europa e nesse sentido desenvolver relações com alguns países além dos dois ou três maiores, e entre esses os países do sul da Europa, em especial no campo económico.
Em Portugal, o quê em específico?
Por exemplo, estamos a trabalhar num projeto relacionado com carne. Fui à serra da Estrela e a outras regiões, visitei matadouros, estamos a preparar o terreno para um convénio sobre questões veterinárias. Portugal produz peças automóveis e o Irão é um dos países da região que mais carros produzem, por isso necessitamos de peças. Também pode exportar artigos farmacêuticos. Em sentido contrário, Portugal importa produtos petroquímicos, alumínio, aço, materiais de construção, minérios e em breve esperamos exportar peixe e marisco de aquacultura.