O ano de polémica que arrisca desvalorizar a estação pública

Para muitos o mundo vai acabar para a semana. Mas no caso da RTP, dizem os especialistas, cada polémica deste ano horrível está a acabar, aos poucos, com a televisão pública. Uma reflexão oportuna em época de balanços.
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Em doze meses, a estação pública perdeu dois diretores de informação - o da rádio no início do ano e o da televisão no final - um diretor de programação e uma administração que, no final do ano passado, tinha merecido a confiança do executivo.

Um annus horribilis em que a RTP enfrentou, pelo menos três vezes, e combateu a suspeita da interferência política por parte do ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas. Acusações de ingerência que cruzaram a rádio e a televisão, a informação e a programação. Até a administração não ficou de fora e afirmou-se surpreendida quando viu anunciado, em agosto, por parte do assessor do governo para as privatizações, António Borges, o cenário da concessão da estação pública a privados. Por muito que o executivo explicasse que o futuro da RTP ainda não estava decidido, a opinião pública desdobrava-se em reações. O antigo presidente da República Mário Soares chamava "pouca vergonha" à proposta apresentada, a União Europeia escrevia ao governo de Portugal a pedir que renunciasse a essa proposta e que abandonasse "os planos que visam colocar a RTP em mãos privadas".

O primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, salvaguardava a partir de Londres que "a hipótese que estava ser mencionada [a de concessão] era uma de vários cenários que estão a ser equacionados". Dizia mesmo que não podia haver margem para tabus: "Há um conjunto de consultores que foram recrutados pela RTP para fazer o estudo do processo de alienação que estava previsto no programa de governo e no âmbito desse estudo não haverá tabus."

Mas o coro de protesto prosseguia, com os responsáveis da estação pública a criticarem o modelo: desde o diretor-geral de conteúdos, Luís Marinho, ao então diretor de informação Nuno Santos, passando pelos diretores de programas da rádio, Rui Pêgo, e da televisão, Hugo Andrade. Foi desde esse quente mês de agosto que a RTP não mais largaria os títulos dos jornais e até, ciclicamente, as manchetes.

O VALOR DA RTP NO FIM DO ANO

Mas o que vale a estação pública no final deste ano? Que consequências para os trabalhadores, quanto perdeu? Manuel Falcão, responsável pela agência de meios Nova Expressão e antigo diretor de programas da RTP2, não se alonga em comentários. Mas numa frase só resume: "A RTP vale, em dezembro deste ano, muito menos do que valia no ano passado."

André Freire, presidente de agência de meios Carat, concorda: "Não vale o mesmo porque a economia e o mercado publicitário estão em quebra e a RTP não é exceção." Contudo, o responsável assinala que "o pior que podia haver na estação pública é a indefinição. É mau para a RTP e para os concorrentes, o mercado é muito regulado e é preciso que o Estado rapidamente resolva o tema". Aliás, Freire lembra: "Quando Alberto da Ponte assumiu o cargo de presidente do conselho de administração, sublinhei que a indefinição do futuro podia afetar a empresa e a sua performance. Sobretudo porque uma não decisão tinha e tem imensos custos, e creio que estão a subdimensionar o impacto que isso provoca na RTP."

O responsável da empresa Produções Fictícias, Nuno Artur Silva, diz-se preocupado. "É uma estação pública de todos nós, que me preocupa imenso. O que assistimos durante este ano é a uma total falta de sentido público e de responsabilidade da tutela", considera. E vai mais longe: "Do ponto de vista do que se está a fazer a um bem público, não imagino uma gestão mais catastrófica da tutela da RTP. Tem sido absolutamente catastrófica, errática, contraditória e destruidora", sublinha à NTV.

O DRAMA DE QUEM TRABALHA PARA A RTP

Ainda assim, Nuno Artur Silva quer continuar a olhar para o lado positivo da vida. "Como sou otimista, continuo a acreditar que é um instrumento absolutamente essencial para aquilo que temos de mais precioso: a língua portuguesa. É por considerar ser "um património maior" que "devia ter na indústria audiovisual o seu motor", caberia "à RTP ser a peça-chave disto", de forma a "criar uma política de desenvolvimento do audiovisual da língua portuguesa".

É por esta razão defende que "privatizar não faz sentido", diz Nuno Artur Silva. Numa RTP com expressão internacional, "faz sentido reformá-la, dar-lhe escala". Para o responsável pela empresa de produção de conteúdos de humor, "não é cortar na estação, deve-se é aumentar, dar-lhe mais importância. A RTP tem de ser o motor de documentários, de cinema, tem de ser um elemento estratégico no mercado".

Do ponto de vista profissional, o responsável pela empresa que assina formatos na RTP1 como Estado de Graça, Anti-Crise ou textos para Herman José, a situação não poderia ser mais asfixiante. "Há 20 anos que trabalho continuamente com a RTP e nunca tinha visto nada assim", adianta. "Estamos sem saber absolutamente nada do que vamos fazer em janeiro..." Nuno Artur Silva revela que há "coisas combinadas" com o diretor de programas, Hugo Andrade, mas vinca que "os formatos deviam estar mais do que confirmados por esta altura."

Uma preocupação a que se juntam dezenas de outros produtores e colaboradores que, a três semanas de arrancar o novo ano, não sabem, nem podem ter a garantia de que vão ter trabalho, quando vai começar, por quanto tempo e em que condições.

PUBLICIDADE VS. AUDIÊNCIA

Para quem comercializa espaço publicitário, a indefinição afigura-se não só perigosa mas acima de tudo pouco proveitosa em termos financeiros. "Todos os profissionais gostariam de estar a fazer planos a dois ou a três anos e neste momento não é possível", sustenta André Freire. Apesar de compreender que "a decisão não é fácil e qualquer que ela seja vai ter sempre gente a achar bem ou mal", este responsável da agência de meios considera que "na RTP, no curto prazo, vai-se navegando à vista", o que configura "um cenário que está longe do ideal." E especifica: "Nesta altura, não se sabe se vai ou não ter publicidade, se abre, se fecha. É fundamental, qualquer que seja o modelo que venha a ser definido, e é uma questão política, que haja uma decisão, com todas as vantagens e desvantagens para a própria RTP."

Uma escolha que ajudará, no entender do responsável desta agência de meios, os concorrentes a encontrar um caminho mais seguro. "O mercado português é altamente regulado e completamente dependente do que a RTP definir como estratégia. Neste momento, o mercado não pode tomar decisões, arriscar investimentos, e num setor onde há três concorrentes, esta não decisão tem custos enormes."

E a quebra das audiências a que a RTP assistiu - desde março deste ano e desde que o modelo de medição da GfK entrou em funcionamento -, de que maneira afetou a estação pública? André Freire adianta que "objetivamente o maior perdedor foi claramente a RTP, se isso é injusto ou não é outra questão". Para este responsável, " misturam-se dois temas distintos: o das audiências e o da indefinição do modelo para a RTP", lembrando que "esse é um problema que tem já um plano de correção em curso."

E AGORA? PRIVATIZAÇÃO A 49%?

Numa altura em que se espera pelo anúncio do novo modelo de privatização da RTP, a ser revelado em Conselho de Ministros até ao final do ano, e no qual o cenário em torno da abertura da empresa a capitais mistos parece agora tomar a preferência no executivo, o realizador António-Pedro Vasconcelos, um dos elementos que lideram o movimento em Defesa do Serviço Público de Rádio e Televisão inquire: "Apesar de ser apenas por enquanto uma notícia não oficial, não me espanta que ela tenha passado pela cabeça do ministro Relvas. Depois das outras 17 ideias e dos seis cenários, porque não esta de entregar 49% da RTP a privados?"

Acredita o cineasta que "se for verdade este novo cenário (ou será que saiu da cabeça da nova administração?), é tempo de alguém travar a irresponsabilidade do ministro Relvas, que parece apostado em vender tudo o que nos resta de soberania, deixando-nos apenas o hino e a bandeira para comemorar de vez em quando os feitos da seleção nacional e os golos do Cristiano Ronaldo."

O jornalista Miguel Sousa Tavares lamentou que "uma instituição com tantos anos esteja nesta situação", considerando que "Relvas está obcecado em privatizar seja de que maneira for. Só ainda não percebi para que o querem fazer, ao serviço de quem e com que vantagens", declarou ao DN. Isto numa empresa que vai voltar a enfrentar duros cortes, na programação e na informação, ainda antes do pano cair sobre 2012.

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