O amor foi correspondido, o humor nem sempre
A estreia da 'Cinderela' de Rossini no São Carlos colocou-nos perante uma encenação com muitas boas ideias, bem humorada e inclusivé evidenciando um virtuosismo cénico/coreográfico com pendor para a comédia contínua, a auto-derisão e o mágico/fantástico, com piscadelas de olho ao 'Morcego' de Strauss e à 'Flauta Mágica' e cenários que alternam entre o classicismo e o 'art-déco', com nítida definição cromática. O que tem por contrapartida, porém, que do lado dos intérpretes, haja equivalentes dotes cénicos/coreográficos/histriónicos, alicerçados sobre muito seguros dotes vocais, para que tudo se funda idealmente de acordo com o ritmo sugerido pela encenação.
E isso nem sempre se verificou na produção que estreou na noite de quarta-feira. O caso mais gritante foi o do muito "verde" tenor Jorge Franco, no papel do príncipe: ele simplesmente não se sabe mexer e a sua figura tão franzina/delgada acaba por "funcionar" contra ele. Vocalmente, tem boa escola e fraseia bem, mas o timbre é (ainda) demasiado 'leggiero'.
A Cenerentola de Chiara Amarù parece-nos caracterizada equivocamente: por que razão há-de ela parecer mais velha que as irmãs? Em termos de composição, Chiara nem sempre cumpriu com a dignidade que queria fosse a sua marca, pelo que a comiseração não esteve ausente. Vocalmente, Chiara possui a escola completa deste estilo, o timbre é o de um 'mezzo' puro-sangue, a afinação infalível, a agilidade fiabilíssima; a voz não é grande, mas também nos pareceu que ela se poupou no 1.º ato para melhor se "revelar" no 2.º.
Do lado de histrião, as prestações de Domenico Balzani (Dandini) e José Fardilha (Don Magnifico) sobraram para as encomendas, enquanto que, do lado vocal, entre os dois, só se pode apontar a Fardilha algum desgaste vocal e a intonação por vezes ligeiramente oscilante. As filhas (Carla Caramujo e Cátia Moreso) estiveram genericamente bem, embora aqueles figurinos tipo-Dona Redonda que envergam na maior parte da récita não favoreçam a sua movimentação. Carla Caramujo portou-se muito bem na sua ária do II ato. Por fim, Luca Dall'Amico foi um Alidoro muito convincente dentro da inverosimilhança (propositada) do seu papel, apoiado numa voz bem definida/centrada e com boa projeção.
A Sinfónica Portuguesa não conseguiu desta feita repetir o brilharete obtido com o 'Macbeth' verdiano. Da "performance" ouvida, notou-se um nível mais apurado nos 'concertati', ao nível da coesão orquestral e coesão com os cantores; mas a sonoridade, seja do 'tutti', seja dos naipes individuais, esteve em geral longe daquilo que deveria ser uma orquestra italiana do primeiro terço do século XIX, uma orquestra de/para Rossini - e para ópera cómica de Rossini: articulações, fraseios, definição tímbrica, equilíbrio relativo dos acordes não se coadunaram com o que seria ideal para uma obra com estas características. Referência adicional para os 'tempi' adotados, frequentemente abrandados/arrastados, e para o facto de a orquestra ter amiúde "coberto" os cantores, inclusive nos 'concertati', razão para se repensar a gradação das dinâmicas do lado do fosso.