Este ano, pouco antes do Festival de Cannes (17-28 maio), a Gallimard lançou Le Jeune Homme, 17.º livro da editora com assinatura de Annie Ernaux. Havia uma sugestiva rima cinematográfica: a Quinzena dos Realizadores iria revelar Les Années Super 8, com assinatura da escritora e do seu filho David Ernaux-Briot, filme de memórias familiares (em película Super 8) que pode ser descrito como uma derivação do livro autobiográfico Os Anos, lançado em 2008, evocando um período situado entre 1941 e 2006 (recorde-se que a autora nasceu em 1940)..Mesmo não conhecendo toda a vasta obra de Ernaux (é o meu caso), os livros citados ajudam-nos a abrir caminho para um tema, de uma só vez social e fantasmático, que assombra a sua escrita. Será um misto de desencanto e perseverança, exaltando o direito de cada um de nós contar - e, num certo sentido, resgatar - as convulsões da sua própria história. Aliás, Os Anos abre com uma esclarecedora citação de José Ortega Y Gasset: "A única história que temos é a nossa e ela não nos pertence". Logo na primeira frase, deparamos com um estranho sinal de luto: "Todas as imagens irão desaparecer"..Como viver tudo isto? A resposta da mulher agora consagrada com o Nobel é inequívoca: escrevendo! Em Le Jeune Homme, evocando, na primeira pessoa, uma relação com um homem trinta anos mais novo que ela, está desde o começo exposto um cristalino programa pessoal, de uma só vez artístico e político: "Se não as escrevo, as coisas não seguiram até ao seu fim, foram apenas vividas"..Com enfrentar, então, essa "insuficiência" do ato de viver? Escrevendo, escrevendo sempre. Mas então escrever já não é viver? De alguma maneira, é arriscar uma intensidade que nos faz sair das evidências do ato de viver, para abraçar aquilo que, mesmo através da certeza nua da morte, se pode partilhar ainda como exaltação da vida. O seu livro de notas autobiográficas, editado em 2011, relançado também este ano (com algumas páginas inéditas de Mémoire de Fille, de 2016) tem como título L"Atelier Noir (à letra: O Atelier Negro). Ou como ela escreve em Os Anos, estabelecendo um genuíno princípio de trabalho, trata-se de "salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar"..Ao longo de cinco décadas de escrita - o seu primeiro romance, Les Armoires Vides, surgiu em 1974 -, Ernaux nunca deixou de viajar nesse ziguezague entre o que é vivido no interior das fronteiras da mais radical intimidade e o que acontece no espaço "social". Talvez, para lá de todas as diferenças, aproximando-a um pouco desse gesto que levou outra escritora francesa, Marguerite Duras, a usar a expressão "vida material" no título de um livro de 1987 - afinal de contas, Ernaux escreveu um Journal du Dehors (1993) e ainda La Vie Extérieure (2000), ambos remetendo para o que se passa "lá fora"..Seja como for, o valor da intimidade não tem que ver com uma Annie Ernaux eremita. Lembremos, por exemplo, que ela foi uma das signatárias do chamado "Manifesto dos 58", em finais de novembro de 2015, reagindo contra o facto de, na sequência dos atentados terroristas em Paris (no dia 13 do mesmo mês), as autoridades municipais, invocando questões de segurança, terem tentado interditar as manifestações públicas..O nome da escritora está também (indiretamente) ligado ao chamado "Manifesto das 343", documento fulcral na história social e política da França na segunda metade do século XX. Assim, a 5 de abril de 1971, a revista Le Nouvel Observateur publicou um texto assinado por 343 mulheres, apelando à legalização do aborto em França, lembrando que havia "um milhão de mulheres a praticar anualmente o aborto" e explicitando: "Declaro que sou uma delas". Expunham-se, assim, à possibilidade de serem indiciadas legalmente e a penas que podiam ir até à prisão - entre as signatárias estavam Simone de Beauvoir (redatora do manifesto), Catherine Deneuve, Marguerite Duras, Gisèle Halimi e Jeanne Moreau..Ernaux tinha feito um aborto clandestino em 1964, mas não assinou o documento, vindo a relatar a experiência vivida num livro perturbante, O Acontecimento, lançado no ano 2000, depois adaptado ao cinema por Audrey Diwan (filme admirável, vencedor do Festival de Veneza de 2021). Em 2014, numa entrevista ao jornal L"Humanité, recordou esse contexto: "Em 1971, estava fora de questão [assinar o manifesto]. Era impensável. Eu não era nada. Para mais, estava casada com um executivo e declarar publicamente que tinha abortado teria o efeito de uma bomba." Na mesma entrevista, a escritora refere que o seu livro foi recebido pela "lei do silêncio", citando mesmo um jornalista que lhe disse que não quis abordá-lo publicamente porque a sua leitura lhe "deu náuseas"..Uma Paixão Simples (1991) deu origem a outro filme invulgar, realizado por Danielle Arbid em 2020. No seu centro dramático encontramos, ainda e sempre, o amor da escrita obcecado pelo modo como dois seres se aproximam e tocam (literal ou simbolicamente). Aí ela escreve (cito a tradução portuguesa de Tereza Coelho): "Quando eu era criança, para mim o luxo eram casacos de pele, vestidos compridos e vivendas à beira-mar. Mais tarde, pensei que fosse ter uma vida de intelectual. Agora parece-me também que é poder viver uma paixão por um homem ou por uma mulher"..dnot@dn.pt