O alojamento local como arma de perda de soberania
Chegar às tantas da noite a um posto de abastecimento nas Galinheiras, Alta de Lisboa, encontrar uma pequena multidão, abastecer e assistir a uma cena de tiros. Aconteceu há duas semanas a quem calhou parar nesta bomba de combustível. A produção de Linhas de Sangue, de Sérgio Graciano e Manuel Pureza, não encerrou o estabelecimento e conseguiu estar uma madrugada inteira a rodar dois momentos chave desta comédia satírica. As pessoas que por lá passavam assistiam incrédulas ao ator João Vicente, de arma na mão, a lutar com o herói Manuel Chança, interpretado por José Raposo. Incrédulo, se correr tudo bem, vai ficar o público que no dia 26 julho se deparar com o filme nas salas. Esperam os produtores e realizadores um público numeroso, para contrariar a tendência de divórcio com o cinema português. Mas são eles que nos dizem que Linhas de Sangue é algo como nunca se viu no cinema nacional: "esta longa é um pouco os Monty Python a quererem fazer o Top Gun!", conta Sérgio Graciano, enquanto que o seu colega avisa: "sim, mas sem dinheiro para ter aviões".
A proposta insana que está agora em pós-produção nasceu com uma deliciosa curta-metragem apresentada no Indie. Chamava-se precisamente Linhas de Sangue e era uma comédia de terror bem sangrenta e com vénias ao cinema de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino. Tinha um elenco com as estrelas da novela (que agora regressa em peso) e humor que agradou no MOTELx ao realizador americano Eli Roth. Desta vez, em versão longa, a intriga fica mais ambiciosa e surgem mais personagens. Tudo se passa num país chamado Portugal em pleno ataque de forças estrangeiras que querem conquistar a nossa soberania através do Alojamento Local. Cabe a uma resistência valente tentar lutar pela independência do país e do mundo, mesmo contra agentes poderosos e sanguinários comandados por esse misterioso cérebro do mal, o Chanceler.
Na madrugada em que o DN visita a rodagem, em cada ensaio e take, acontece o que nos dizem ser habitual neste projeto: uma energia contagiante, realizadores felizes a aplaudir o trabalho de atores e os técnicos a rirem à gargalhada com os diálogos insanos a que assistem. Neste plateau verifica-se também uma informalidade e um à vontade raro: é como se todos estivessem em casa. A tal ponto que Miguel Costa, ator com dois papéis, nessa noite não tem nenhuma sessão mas faz questão de estar presente para apoiar e divertir-se.
"Apesar desta galhofa, é um projeto feito com muito amor e entrega. Considero que estou a trabalhar com alguns dos melhores! Fizemos este filme muito a sério mas com muito boa onda!", confessa Miguel, que para um dos papéis colorou por completo o cabelo.
Linhas de Sangue, feito sem subsídio estatal mas com investimento privado e da NOS Audiovisuais, quer mesmo fazer muito público e porque Pureza e Graciano trabalham em novelas e séries televisivas, foi fácil convencer campeões de audiência como Dânia Neto, Catarina Furtado, José Fidalgo, José Mata, Lourenço Ortigão, Marina Mota, Isabel Figueiras, Paulo Pires, Kelly Bailey ou o youtuber Wuant.
Entre gravações de muitos outros projetos, Sérgio Graciano, que o ano passado estreou nos cinemas títulos como Perdidos e Uma Vida à Espera, confessa que é duro fazer uma longa-metragem como esta em menos de um mês. Está cansado mas diz que se diverte imenso: " e estamos sobretudo aqui a retratar as nossas influências, o cinema dos anos 1980 e 90 que víamos. No cinema português não há referências desse tipo de comédias negras". Ao mesmo tempo, mostra-nos ainda imagens nas quais ainda faltam alguns efeitos: vemos perseguições, cenas de pancadaria e uma escala de produção considerável, onde não faltam duplos (coordenados por David Chan, especialista de coordenação de ação) e explosões. Pela amostra, não falta sátira política com governantes corruptos, homens musculados, mulheres zarolhas e uma erotização "cartoonizada".
Paulo Pires, que está prestes a rodar uma cena de ação no mesmo décor, também não dormiu muito - nessa manhã tinha acordado muito cedo para gravar a novela. Ele é um 007 português, algo ridículo e desajeitado: "no começo, quando me convidaram, achei que seria uma loucura aceitar pois estava a gravar uma novela. De repetente, vi que estavam todos a aceitar e disse-lhes que também tinha de entrar". Quem também quis participar num "cameo" tresloucado foi Wuant, o jovem youtuber campeão de audiências, que uns momentos antes aceita tirar selfies com um agente da polícia que está no plateau a garantir a segurança. "Isto é a minha onda, uma nova experiência para mim. Assim do nada, estou no cinema. E aqui sou o único sobrevivente deste massacre na bomba de gasolina. Depois, fazem-me uma entrevista e sou o maior", diz-nos feliz da vida este estreante em cinema.
Julho ainda está longe mas Manuel Pureza alerta que é importante haver um trabalho de promoção adiantado. Dia 5, na apresentação à imprensa do Festival Ymotion, os cineastas apresentam um primeiro "teaser", estando depois prevista a estreia de novo teaser no Rock in Rio, onde se desvendará a banda-sonora , cheia de duetos com figuras da pop nacional, como Carlão e os Xutos e Pontapés. Pureza e Graciano querem à viva força pôr os portugueses a rir com sangue e tripas e uma estética que evoca comédias como Ultra Secreto, dos Z.A.Z. Nonsense para as massas, pois então. O ator Diogo Valsassina, que naquela madrugada estava a preparar-se para uma morte hilariante da sua personagem, é peremptório: "este filme tem mesmo tanta piada como parece. Eu sou fã deste tipo de comédias em que os atores estão sérios a fazer coisas completamente ridículas. Nunca se fez nada deste género em Portugal".