O alarme
Na semana passada, o editor de política internacional do Financial Times, Gideon Rachman, publicou um artigo a propósito de Defying Hitler, livro de memórias de Sebastian Haffner, um jovem advogado alemão que se exilou em 1938 agoniado com a ascensão política do nazismo.
"Cada sílaba do seu jargão revoltante denotava uma estupidez violenta", escreveu Haffner a propósito dos nazis.
A ênfase dada pelos moderados alemães daquele tempo à "estupidez", subestimando a "violência", é um dos pontos do artigo de Rachman: por serem tão estúpidos, os nazis beneficiaram de um certo desprezo de Haffner e seus pares, prosperando rumo ao poder.
O jornalista recordou a obra de Haffner no contexto da ascensão de Donald Trump e, agora, de Boris Johnson. Não chegou mais abaixo, a Jair Bolsonaro.
No entanto, episódios como a tosca divulgação do vídeo Golden Shower, a obsessão por pénis no discurso presidencial e tantas outras originalidades, também têm levado os moderados brasileiros de hoje, como os alemães dos anos 1930, a privilegiar o lado cómico ao lado trágico do seu presidente: tendem a achar que, de tão medíocre, o presidente cairá sozinho, sem esforço.
Na altura das bizarrias do parágrafo acima, por volta de março, abril, Bolsonaro, que depois das longas férias no Congresso Nacional (aprovou dois projetos em quase 30 anos) se via obrigado a trabalhar, afirmava já estar "cansado", perguntava-se "o que eu fiz para merecer isto?" e dizia não ver a hora de se ir embora logo ao fim do primeiro mandato.
Mas, inebriado pelos salamaleques oficiais, os abre-portas institucionais e os lambe-botismos governamentais, em junho, já começou a falar em reeleição e agora, entrados em agosto, sente-se cómodo e confiante como nunca no cargo.
A ponto de na última semana e meia ter dito que a jornalista Miriam Leitão, presa, espancada e ameaçada de violação na ditadura militar, jamais foi torturada, ter chamado os governadores do Nordeste de "paraíbas", termo preconceituoso usado no Rio de Janeiro para se referir a nordestinos, ter classificado de "grande mentira" a afirmação de que há fome no Brasil, um país onde em 2017 morreram 15 pessoas por dia de desnutrição, e ter duvidado de um estudo de um instituto de pesquisa espacial que revelou que houve um aumento do desmatamento da Amazónia de 57% entre maio e junho.
Não contente, chamou Glenn Greenwald, o jornalista vencedor de prémio Pulitzer que vem revelando parcialidade e outras ilegalidades na condução a Lava-Jato, de "malandro" por se ter casado com outro "malandro" no Brasil, adotado filhos e assim evitar ser deportado, na sequência de uma portaria (a 666) assinada por Sergio Moro, que pareceu feita à medida do repórter americano, por prever expatriação de pessoas incómodas ao governo. "Talvez pegue cana aqui no Brasil", rematou Bolsonaro, para quem o facto de Greenwald não ter cometido crime nenhum é acessório.
E, para finalizar, em retaliação a críticas de Felipe Santa Cruz, bastonário da Ordem dos Advogados, revelou saber detalhes da morte do pai dele, desaparecido durante a ditadura militar. Sugerindo até - enquanto cortava o cabelo no mesmo horário de uma reunião, que cancelou, com o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Le Drian, sobre o acordo UE-Mercosul - que Fernando Santa Cruz foi morto pelo próprio movimento de esquerda de oposição a que pertencia.
Na verdade, segundo documentos oficiais do Ministério da Aeronáutica, Santa Cruz foi preso pelo DOI-Codi, a PIDE brasileira, a 23 de fevereiro de 1974, tinha o bastonário 2 anos, e depois desapareceu, só não se sabe se sepultado numa vala comum em São Paulo ou incinerado numa usina de açúcar no Rio de Janeiro.
O comentário leviano a jogar lama sobre um morto e a sua família, o ataque a um jornalista cujo único crime é incomodar um ministro do seu governo, o desprezo por dados científicos, sobre a fome e sobre o desmatamento, o preconceito para com alguns brasileiros e a institucionalização de fake news são motivos bastantes para soar o alarme da estupidez violenta. Aquele a que Haffner e seus pares não deram importância.
Agora já não só dos 61% de brasileiros que não votaram em Bolsonaro - esses já andam alarmados há pelo menos um ano - mas também dos 39% que votaram.