O ajuste de contas em nome de Portugal
Confesso que chorei. Tinha 14 anos e uns minutos antes corria pela casa para levar à minha mãe a boa nova dos golos do Jordão. O sonho estava nas mãos, o segundo sonho, que o primeiro tinha sido ver Portugal entre as maiores seleções. Sabiam a vitória os empates com Alemanha e a Espanha, que Portugal era dos pequenitos do futebol ao tempo. Depois ganhou mesmo, à Roménia, no golo que Nené marcou com a canela. Parecia impossível vergar a França, a seguir, já nas meias-finais e lá em França ainda por cima, mas de repente acontecia: a seis minutos do fim do prolongamento, final à vista. O sonho ruiu nesses minutos escassos, e foi duro, por obra de um desconhecido Domergue que bisava e de um muito conhecido Platini que nos eliminava. Demasiado duro para miúdos de 12 e 14 anos que choraram abraçados na sala lá de casa, sem que a mãe entendesse o que podia ter mudado tanto em tão pouco tempo. Passaram 32 anos. Recordo "uma canção, uma bandeira na mão, a cor da esperança e a cor do meu coração..." e ainda me comovo, e junto as eliminações de quando já não chorava com derrotas da bola mas que arrasto em memórias a pedir desforra: em 2000 também com vantagem perdida, após o grande pontapé de Nuno Gomes, e 2006, em Munique, quando senti em pleno estádio que ia correr mal outra vez, de novo após um penálti que Zidane não falhou. Hoje é o dia do reencontro.
Um ex-jogador francês, Jerôme Rothen, diz que Portugal não tem hipóteses nenhumas, que William ou Danilo não são capazes de uma variação de flanco e que Renato Sanches tem zero em visão de jogo. Curiosamente, lembro-me de Rothen numa final entre portugueses e franceses, FC Porto e Mónaco, em Gelsenkirchen. Os franceses variaram o flanco com dificuldade, a visão de jogo dos seus médios não valeu de muito e Rothen foi um fantasma em campo, não teve hipóteses. Há memórias que doem. A nós e a eles. Aliás, Rothen não fala da equipa portuguesa - aquilo de o futebol ser um jogo coletivo parece insignificância para o homem -, apenas atira com nomes avulso, a denegrir profissionais e a fundamentar a arrogância, para concluir que este Portugal não tem a mesma qualidade de outros tempos. Penso exatamente o mesmo desta França, só que pelo prisma do coletivo, que talento individual não lhe falta: é mais fraca que qualquer das outras que fizeram história, as de 84, de 1998-2000, e até de 2006. Já agora, quem tem fora do onze Coman, Martial e Gignac, e nem sequer convoca Benzema e Valbuena , mais Rabiot, Kondogbia, Ben Arfa, Nasri ou Gameiro bem podia ter dado mais a este Europeu que umas vitórias tímidas sobre Roménia e Albânia, uma goleada a islandeses em fim de festa e um triunfo perante a melhor equipa - a Alemanha - construído só em contra-ataque e a partir de um penálti detetado em exame de optometrista.
Dizer isto não é recusar a evidência: a França é favorita outra vez, tão ou mais do que nesses encontros do passado, mesmo se não tem no meio campo a classe do losango mágico de 84 - Fernandez, Tigana, Giresse e Platini - e menos ainda a solidez de betão da defesa da viragem do século - Thuram, Blanc, Desailly e Lizarazu. É favorita essencialmente porque se encontrou no actual 4-2-3-1, bem melhor que no 4-3-3 com que iniciou a prova. A dupla Pogba-Matuidi liga melhor os momento defensivo e ofensivo e Sissoko a acrescentar a verticalidade que claramente faltava nos primeiros jogos. Como um ala sempre pronto a acelerar na direita, é mais difícil para o adversário concentrar-se apenas nos movimentos "de fora para dentro" dos maiores talentos gauleses, Griezmann e Payet. Além de que, no momento defensivo, Sissoko garante também um equilíbrio que Coman, por exemplo, dificilmente daria, além de um apoio ao lateral com que Evra não conta do lado contrário. A equipa cresceu taticamente e tem uma capacidade de aceleração única do meio campo para a frente, o que torna absolutamente obrigatório que Portugal impeça um jogo partido, de transições resultantes de perdas de bola consecutivas. Caso contrário, por muito que se esforcem os novos patrícios, a luta será desigual e o destino dificilmente diferente do passado. Os alemães seriam dificílimos porque coletivamente sabem inventar espaços. Os franceses não conseguem isso, mas aproveitam o espaço como ninguém. Se lhes for dado.
A Portugal recomenda-se que volte a ser, tal como no jogo frente ao País de Gales e na sua melhor exibição neste Euro, uma equipa que mantenha um jogo ligado, que pense em defender quando tem a bola e em atacar quando a não tem. É mesmo assim, que já não é tampo de lamentar a ausência de um artista a meio campo ou de um grande ponta-de-lança: trata-se de atacar sabendo que terá de se defender a seguir, e defender com uma organização capaz de atacar mal a bola seja recuperada. Só desse modo irá forçar a França a um exercício de paciência para o qual parece menos talhada, podendo aproveitar o erro que há-de surgir. Nenhuma equipa faz um jogo inteiro sem falhas e esta seleção francesa não é defensivamente inexpugnável: os centrais não estão muito rotinados e facilmente ficam longe um do outro ao deixarem-se arrastar pelos avançados; Evra protege-se cada vez mais próximo dos centrais e tem pouca cobertura no corredor esquerdo, pelo que haverá espaço a aproveitar; e os médios-centro Pogba e Matuidi, sendo jogadores fantásticos e de enorme rotatividade, saltam demasiadas vezes a par para zonas avançadas do campo - com bola mas até sem ela - o que recomenda o aproveitamento do espaço que fica desprotegido entre eles e os centrais.
O resto é com o talento dos nossos, que também o têm em doses generosas, e um espírito de conquista que todos demonstram, do superlativo Ronaldo aos guarda--redes suplentes que são os únicos não utilizados por Fernando Santos em França. O país já lhes está grato e saberá recebê-los de volta como merecem. Se ganharem, como neste momento sonhamos, vão conseguir mais do que imaginam. Até porque ao mesmo tempo, irão ajustar umas contas antigas - de Chalana e Jordão, Vítor Baía e Rui Costa, Deco e Luís Figo - e garantir que finalmente se faça justiça definitiva àquilo que também somos: um grande país de futebol.