"O Afeganistão e o Iraque são o maior equívoco estratégico em 70 anos"

Autor de um manual com dez regras sobre o conflito, Sean McFate diz que os adversários dos Estados Unidos há muito adotaram as máximas do chinês Sun Tzu enquanto o Ocidente está perdido no tempo e agarrado a leis obsoletas.
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Professor de Estratégia nas universidades de Defesa Nacional e Georgetown, ambas na capital dos Estados Unidos, Sean McFate é um ex-militar que também participou em várias missões em África no setor privado, experiência que o levou a escrever The Modern Mercenary. Publicado agora em Portugal, The New Rules of War (as novas regras da guerra) recebeu títulos bem diversos em Londres (Golias: por que o Ocidente não está a vencer. E o que devemos fazer) ou em Lisboa, aqui com uma vénia a Sun Tzu, o primeiro autor de um tratado de estratégia militar e inspiração de McFate. Livro do ano de 2019 para a The Economist, A Nova Arte da Guerra apresenta exemplos históricos e atuais para justificar dez regras sobre estratégia e guerra e concluir que o ocidente está a persistir há anos no erro.

Faz uma análise desassombrada e crua das relações internacionais e da guerra. Se o seu objetivo era chocar o leitor comum, parabéns! Mas quando escreveu este livro presumo que estava a pensar nos decisores e nos militares. Conseguiu o objetivo de alertá-los?
Escrevi o livro para dois públicos: para a segurança nacional dos Estados Unidos, que são os militares, mas também civis, diplomatas e serviços de informações, porque acho que os EUA e o Ocidente têm estado em défice em termos estratégicos; também o escrevi para um público mais vasto, para que a minha mãe, que nada sabe sobre o tema, possa lê-lo. Foi escrito num estilo que espero ter em simultâneo a substância das ideias e a facilidade de leitura, ser acessível. Creio que essa combinação é boa, não tanto para chocar o leitor, mas para desafiar o senso comum.

O seu ponto de vista é demolidor em relação ao edifício ocidental de regras do Estado de direito e valores humanistas. Já foi acusado de imoralidade? O que diz aos seus críticos?
O que eu digo é que as leis do conflito armado estão irremediavelmente desatualizadas, que foram aplicadas há um século para gerir e mitigar a guerra convencional. Vivemos numa era de guerra pós-convencional e todos os nossos adversários, seja a Al-Qaeda, a Rússia, a China ou o Irão sabem isto e evoluíram o seu modo de guerra, como refiro no livro, mas nós estamos presos ao passado. Eu proponho que, ou se atualizam as leis do conflito em reconhecimento da realidade da guerra no nosso tempo, ou devemos abandonar as leis, que são estrategicamente obtusas. Quando eu digo coisas como estas, que se deve dobrar a lei para a moldar à realidade, há oficiais das forças armadas que me acusam de ser antiético. A esses eu digo: em 1914 alguns oficiais diziam que a metralhadora era antiética, que o submarino era antiético, que os aviões armados eram antiéticos. Em 1918 era o novo normal e hoje estamos num momento parecido.

Critica os gastos desmesurados em equipamento militar que diz ser inútil, como porta-aviões e caças F-35 e aconselha antes expandir as forças especiais, criar legiões estrangeiras e contratar mercenários, além de apostar na guerra psicológica e de informação. É esta a receita para um exército moderno?
Para clarificar, não aconselho a contratação de mercenários porque isso gera mais mercenários. O que antes recomendo é a legião estrangeira. Não digo que Portugal o deva fazer, mas seria criar uma unidade no exército português, comandada por oficiais portugueses e que trabalhem em exclusivo para Portugal, mas que possam alistar-se de qualquer parte do mundo. É parecido, mas não são mercenários, não é a legião estrangeira de França. A era dos superporta-aviões está a chegar ao fim, a era dos caças já acabou. A última vez em que houve um combate aéreo estratégico que mudou o rumo de uma guerra, pelo menos para os EUA, foi na guerra da Coreia. Porquê investir em mais caças, principalmente pilotados por pessoas? Há a chamada maldição do vencedor: diz-se que os generais querem lutar a última guerra, especialmente se a venceram. O que isto significa é que em vez de pensarem nas ameaças futuras ficam aprisionados no passado. A última vez que os EUA venceram uma guerra grande foi em 1945. E vemos isso quando na competição dos grandes poderes imaginam um cenário como se fosse a batalha de Midway no Mar do Sul da China, com porta-aviões e F-35. É obsoleto. Estamos a gastar todo o dinheiro em armas que não vão para a guerra. A forma como se mede a utilidade de uma arma é a regularidade com que é usada e nos últimos 17 anos usámos tropas de operações especiais e um leque de coisas que se chama de guerra não convencional. Não há nada menos convencional hoje do que uma guerra convencional. É o tipo de guerra que o Ocidente quer combater, porque é bom nele, e estamos a gastar muitos recursos e ideias a reviver as glórias passadas em vez de encarar e enfrentar o futuro.

Foi o general Petraeus quem lhe sugeriu sair do exército e estudar. Seguiu o conselho para depois concluir que Petraeus foi responsável por uma estratégia falhada.
Quando me disse isso, o general era então coronel, eu era tenente e estávamos nos paraquedistas. Magoou-me porque eu queria ficar no exército e pensei que ele me estava a despedir. Petraeus disse-me que no futuro as guerras não seriam convencionais e que eu deveria estudar o assunto. Avançamos 20 anos e ele propõe uma estratégia de contrainsurreição para o Iraque, que de facto foi não convencional, mas completamente defeituosa, porque se baseia em subornar populações. Os indivíduos são corrompíveis, mas populações inteiras não. Imagine-se a Rússia dizer à população pobre de Lisboa que iria dar comida, educação e saúde gratuitas, um novo estádio de futebol e tudo o que teriam de fazer era votar no candidato preferido russo na próxima eleição. Os lisboetas iriam fazer o que fizeram os iraquianos e os afegãos: receberam o que os norte-americanos deram, mas não votaram em quem aqueles queriam. Isto é a ausência de um pensamento estratégico.

Dividiu o livro em dez regras. Se tivesse de escolher três absolutamente essenciais, quais seriam e porquê?
Ah, esta é difícil. As regras 1 a 4 são as coisas que temos de deixar de fazer e as 5 a 10 são as que temos de começar a fazer. A número 5 é "As melhores armas não disparam balas". Quando a maioria pensa em guerra imagina-se guerra cinética, militares a disparar sobre outros militares. Mas a guerra é tridimensional. A Guerra Fria não era uma metáfora, foi uma guerra. Muitas das guerras na história oscilam em períodos de conflito e de instabilidade, como as guerras dos 30 anos, dos 100 anos, ou do Peloponeso. Os norte-americanos acham que se tivermos aviões de caça e tecnologia iremos vencer, mas os EUA perderam no Vietname, no Iraque e no Afeganistão contra forças muito primitivas, não eram superpotências. As vitórias no campo de batalha já não são determinantes para ganhar uma guerra. Sobre a regra número 9, "As guerras na sombra prevalecerão", a ideia é de que segundo as regras antigas, se se quiser esmagar um país enviam-se tanques, como a União Soviética fez na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968. Hoje se se fizer isso o país torna-se num pária internacional, vence a batalha mas perde a guerra porque o mundo inteiro ficaria contra esse país. Hoje todas as pessoas têm um iPhone e todas as pessoas são jornalistas. Quem quer travar uma guerra fá-lo em segredo, cria-se um nevoeiro e combate-se entre o nevoeiro. Foi o que a Rússia fez ao tomar a Crimeia à Ucrânia. Quem sabe o que se está a passar hoje na Líbia? É por isso que as operações especiais estão a ser enviadas para todos os lados hoje em dia. Mas temos de saber combater guerras na sombra, porque as democracias e os segredos não são compatíveis. É esta a pergunta que devemos fazer: como é que combatemos as guerras na sombra sem perdermos as nossas almas democráticas? E a regra número 10, "Existem muitas maneiras de conquistar a vitória", porque estamos obcecados com a vitória no campo de batalha. Isto está diretamente relacionado com Karl von Clausewitz, que defendia a ação militar sobre tudo o mais. Sabemos que não é verdade, existem instrumentos económicos e diplomáticos, existem informações e desinformações. A vitória é maleável, há muitas maneiras de vencer. Por vezes vencer é mantermo-nos vivos. Ou se não podemos vencer militarmente podemos tentar virar o regime. A vitória vai para o astuto e não para o mais forte, a arma mais forte que temos são os 12 centímetros que temos entre as orelhas.

Sun Tzu é a sua maior inspiração? Na missão de salvamento do presidente do Burundi que refere no livro recorreu ao livro A Arte da Guerra?
Sim. Os exércitos modernos ocidentais são baseados em Clausewitz e desprezam Sun Tzu como o bolinho da sorte da estratégia. É difícil de ler Sun Tzu porque é um chinês antigo e poético, é como ler Clausewitz sem conhecer a história europeia. Para Sun Tzu o zénite da habilidade é ganhar a batalha sem disparar um tiro, é a preparação. O mais importante não é o poder de fogo, é o logro. Como vivemos na idade da informação, a informação vai ser mais importante que o poder de fogo para ganhar guerras. No Burundi eu não tinha uma equipa SEAL comigo, tive de trabalhar com o que havia. É como no futebol, o ponta de lança faz uso de simulacros para entrar nas linhas defensivas. Estamos a entrar numa era de guerra suntzunista e aqueles que se estão a dar bem na guerra usam estratégias de Sun Tzu.

Quando escreveu o livro deu como exemplo de estado profundo a impossibilidade de os presidentes americanos retirarem do Afeganistão. Joe Biden está a retirar. A tomada do poder pelos talibãs será uma derrota do estado profundo ou a maior derrota dos Estados Unidos?
(Gargalhada) O estado profundo a que me refiro não é o de Donald Trump nem o de Steve Bannon, não é uma conspiração. O complexo industrial-militar dos EUA é uma espécie de estado profundo onde empresas como a Ratheon, a Boeing ou a Lockheed fazem pressão no Congresso para se comprar mais aviões de caça. A Marinha disse recentemente que não precisava de mais F-18 Hornet, mas o Congresso quer por causa das fábricas e dos empregos. Os EUA estão por fim a sair do Afeganistão, o que é muito controverso, não entre o povo americano, mas entre os membros da classe de D.C. O general Petraeus disse que temos de ficar, George W. Bush disse que temos de ficar. Não dizem porquê. O medo de que a Al-Qaeda possa reerguer-se? A Al-Qaeda está em 20 países depois de a termos escorraçado do Afeganistão. Há algo destas empresas de biliões que querem vender armas, mas é mais do que isso... O Iraque e o Afeganistão são o maior equívoco estratégico nos últimos 70 anos. O Vietname foi um erro e não aprendemos com ele, tal como não aprendemos agora. Achamos que a próxima guerra é como a Guerra Fria com a União Soviética, mas estamos em 2021 e não em 1981. É uma derrota. Tenho vários colegas que dizem que não. Mas alcançámos os objetivos? Nem por isso.

Porque é que os EUA ainda não olharam para o vizinho do sul como um país em guerra? O México pode ser um Estado falhado?
Não diria um Estado falhado, mas um Estado frágil. Mas pode-se argumentar sem dúvidas de que o México é um Estado em falha. Um grupo de reflexão com sede em Londres, o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, faz uma pesquisa anual sobre os conflitos armados e em 2017 os países com mais mortes eram a Síria e depois o México. Os norte-americanos não veem o que se passa como guerra, mas como criminalidade, por alguma razão misteriosa . Morrem mais pessoas devido à narcoviolência na América Latina do que norte-americanos no Iraque. Não faz sentido a primazia dada ao que entendemos como guerra.

Esteve na Libéria e no Burundi como mercenário enquanto fazia uma pausa nos estudos. A guerra pagou-lhe o doutoramento?
Pode dizer-se, embora não recomende como forma de pagar o ensino superior (risos).

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