"O aeroporto tem de ser uma questão de desígnio nacional"
Quem o ouve falar em nome das empresas do setor turístico, enquanto presidente da Confederação do Turismo Português ou do grupo suíço Springwater Capital, que representa por cá, não imagina que há três semanas estava vestido de Pai Natal a fazer o dia da criançada lá de casa. Quando o seu público são os netos, Francisco Calheiros tem poucos limites. "Vou mostrar-lhos, não resisto. São a coisa mais bonita do mundo! Nunca pensei ser um avô tão babado, mas dou por mim a fazer estas ridicularidades." E vai correndo as fotografias no telefone: "A mais velha tem 8 anos, depois vêm os dois primos de 4 e o mais pequenino, a quem chamamos a bomba porque aos 11 meses já pesava 14 quilos."
Com a cumplicidade de quem há muitos anos conhece aquela casa e aquelas pessoas, conforme avançamos pela Vela Latina Francisco vai acenando por igual aos empregados e aos amigos que descobre noutras mesas. Desde que mudou o escritório para a António Augusto de Aguiar, e ainda que não tenha adorado a transformação do espaço, retomou o hábito de ir ali - perdido nos anos em que o teve no Parque das Nações, com casa de jantar incluída, o que potenciava os dias de trabalho de mais de 12 horas seguidas. Os pratos mantêm-se os mesmos - à exceção de umas opções de sushi e outras originalidades recentes - e é mesmo pelos clássicos que vamos os dois. Fígados de aves com arroz branco, que é coisa que não se encontra muito por aí, e até dispensamos a cama de tarte de maçã que a acompanha na ementa. No vinho, um Assobio tinto que combina na perfeição, não me acompanha, prefere água. "Nesta vida, há almoços e jantares praticamente todos os dias e tive de me impor limites. Tenho cuidado com o que como e o álcool é o melhor vício que tenho: só bebo um copo de vinho ou um gin nas férias e ao fim de semana, e nessas alturas sabe-me lindamente." No pão, só toca, e levemente, depois de insistência.
"Tenho 59 anos e trabalho em média 12 horas por dia - o que não é sacrifício nenhum, porque está tudo organizado e tenho liberdade para fazer outras coisas -, tenho uma vida superintensa mas quase todos os dias à noite, quando chego a casa, eu e a Rita (com quem está há mais de 40 anos, a maior parte deles casado) fazemos exercício com uma personal trainer." Também tem o hábito de andar pela praia, nos fins de semana passados em família, em Almoçageme, ou pela zona ribeirinha quando fica por Lisboa. Se há coisa que é clara é que não tem vontade nenhuma de se reformar ou complicar a vida que tem. E um terceiro mandato na Confederação do Turismo Português, que lidera desde 2012, é uma hipótese que não descarta. "Devemos saber na vida o que nos chega e eu adoro tudo o que faço. Nada me move para ter um barco, por exemplo."
Homem de prazeres simples, desde que não lhe falte a família - além da mulher e dos netos, as duas filhas, Marta e Carlota, e a mãe, com quem fala três vezes ao dia e que foi sempre sua companheira de viagens -, o trabalho, os amigos para os jantares de fim de semana e o Sporting, de que é sócio desde que nasceu, será feliz. "Sou muito certinho, a minha história de vida é até maçadora, mas eu não mudava nada. Talvez estivesse mais presente na vida das minhas filhas quando elas eram miúdas, mas de resto, nada. Fiz tudo na altura em que era suposto e voltava a fazer igual. Estudei (no Lar da Criança, no Externato da Luz e no Pedro Nunes), licenciei-me aos 23 anos (em Gestão e Administração de Empresas, na Católica), no último ano já estava a trabalhar como técnico económico, casei com a Rita, minha namorada desde os 17 anos, tive duas filhas que também já têm a sua independência - e isso é o melhor que podemos dar os filhos. Só fiz uma coisa ao contrário: antes dos 30 já era patrão e só mais tarde decidi sair das empresas em que era sócio com cinco amigos e ir trabalhar para outros."
Os 30 anos de turismo que traz na bagagem ajudaram-no a encontrar um lugar primeiro na gestão da Espírito Santo Viagens e depois na Springwater, que a comprou. "Há um tempo saí da gestão diária e o meu trabalho hoje passa mais por procurar novos negócios e representá-los cá. Sempre me atraíram coisas grandes, gosto mais do poder do que do dinheiro. E ser presidente de uma empresa como a Springwater ou a ES Viagens, com mil pessoas e uma faturação a rondar os 400 milhões de euros, nunca podia acontecer se a empresa fosse minha. É uma questão de escala." Acumula essa tarefa com as participações (também como não executivo) em duas empresas de turismo, a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo e a confederação, onde descobriu o associativismo e o seu lado mais feliz: "Foi uma surpresa descobrir que, trabalhando a sério, consegue-se mesmo pôr coisas a andar. É um trabalho extraordinariamente transversal - temos de manter ligações à Economia, à Segurança Social, ao SEF, à segurança, à Administração Interna, às Finanças, aos Negócios Estrangeiros, à Cultura... é uma loucura - e muito time consuming, mas no fim gratificante."
O almoço tardava, mas o incansável Lúcio, ainda contente com o regresso de um cliente antigo, resolveu. Conforme juntamos os fígados de aves ao arroz e descobrimos exatamente o sabor que procurávamos, é pelo turismo que segue a conversa. "Quando ando ali pela zona da Torre de Belém é que se vê a loucura que é. E na minha perspetiva ainda vai melhorar. Todos os indicadores apontam para isso - tirando o drama do aeroporto."
O assunto é sensível - os fígados em pausa por um momento. "É um problema que tem de ser resolvido, mas não estou a ver isso acontecer. Está previsto que o mais tardar até março de 2022 esteja a funcionar a Portela +1 (Montijo), mas antes disso há outras questões. A primeira é que a Portela não aguenta estes quatro anos, pelo que é fundamental conseguir aumentar capacidade - mais voo noturno, por exemplo. Fernando Medina tem-se oposto, mas há formas de contornar o ruído: mais uma hora já ajudava, ou pôr os voos só a descolar a partir de determinado horário (o barulho da descolagem é muito inferior ao da aterragem). E depois a NAV podia aprovar mais frequências por hora."
Todas essas situações estão a ser estudadas para aumentar a capacidade da Portela, mas o que mais preocupa Francisco Calheiros é a solução prevista para 2022. "Tudo o que está em cima da mesa não está a avançar. O aeroporto tem de ser questão de desígnio nacional. O estudo de impacto ambiental devia estar pronto em setembro; já o viu? O acordo com as Forças Armadas está fechado? As contrapartidas, nomeadamente autárquicas, a negociar em que fase estão? A proposta de novo aeroporto que a Ana fez ao governo está respondida?" Para o empresário, a culpa destes atrasos reparte-se entre a burocracia e os ciclos políticos. E por isso diz ser essencial que se feche tudo nos próximos dois anos. "Assumindo que o governo se mantém até ao fim - e não vejo porque não há de manter-se -, se depois o governo muda sem estas coisas estarem fechadas é que fica mesmo tudo parado. Isso seria o caos."
A confederação já levou estas preocupações às reuniões com o governo, com a ANA, mas a resposta resvala sempre no mesmo: está a ser tratado, há prazos que têm de ser cumpridos. "Mas não pode ser. É fundamental saber quais são as prioridades. Fez-se tudo bem no turismo e agora os turistas não desembarcam porque não há capacidade aeroportuária. É ridículo!"
Há outras prioridades na área que já é o segundo motor de crescimento do país - enquanto as exportações totais subiram 12% até novembro, o valor relacionado com a atividade turística disparou quase 20%. "Há muita coisa a fazer, até devido a esta evolução, sobre a carga turística; é preciso descobrir como se pode aliviar a pressão sobre as cidades; há que resolver a falta de pessoas (as escolas põem três mil formados cá fora todos os anos, mas só no ano passado foram criados 50 mil postos de trabalho no turismo). E estamos muito atentos ao programa Capitalizar." Francisco Calheiros diz que aprendeu a focar-se no mais importante e neste ano isso é a solução para o aeroporto e a legislação laboral. "Acho que é um erro mexer na lei agora, quando continuamos a bater recordes de desemprego. Em equipa que ganha não se mexe. O Carlos Silva dizia há uns anos que entre precariedade e desemprego venha o diabo e escolha, mas que venha a precariedade. O que eu recomendo é calma, porque o desemprego é a maior praga que existe, é algo a que não nos adaptamos. Quando a taxa ultrapassou os 16%, não havia quem não tivesse no seu inner circle alguém nessa situação - e nessa altura pensa-se sempre que se pode ser o próximo. O efeito disso nas empresas é péssimo porque ninguém se mexe, não se arrisca, criam-se barreiras, ninguém decide nada. A capacidade de risco vai a zero. Nós em quatro anos caímos para os 8,2%... Os empresários do turismo estão relativamente à vontade com o atual quadro laboral e se precisarem vão contratar sem grandes reservas. Mas se começam a dizer-lhes que vamos mexer no banco de horas, acabar com a contratação a prazo... eles se calhar não arriscam. Já o disse ao ministro Vieira da Silva: não digo que não se mexa nas leis laborais, mas não agora. Não alterem o que está a correr tão bem."
Também o nível e a instabilidade fiscal o preocupam, inclusivamente pelos sinais que se dá a investidores estrangeiros. "Acordou-se com o anterior governo que o IRC ia baixar, foi-nos pedido, aos parceiros, que falássemos com o PS e eles estavam na mesma página - foi quando conheci Mário Centeno, António Costa levou-o a esse encontro connosco. E de repente inverte-se tudo... é complicado." Claro que o dinheiro não estica. Houve descongelamento de carreiras, subiu-se pensões, os escalões de IRS baixaram - "tudo isso agrada a uma clientela definida, mas depois não há margem para descer taxas às empresas". Muito crítico do governo na altura em que ele se formou - "com o apoio de partidos que não acreditam no que eu, como empresário, acredito, nomeadamente a inserção no espaço europeu -, Francisco Calheiros admite que, apesar de tudo, "dois anos depois não foi tão assustador quanto pensei. E hoje há paz social, o que ajuda. Como vai evoluir isto, já não sei." Mas por enquanto vai elogiando o Simplex no turismo, o programa Capitalizar e outras medidas que ajudam o setor. Críticas vão para tudo o que causa entropias, incluindo os oito milhões de euros que todos os meses saem do tecido empresarial para o fundo de garantia salarial e que podiam antes estar a ser canalizados para investimento.
Os fígados já se foram e dispensamos as sobremesas, mas a indiscrição de Lúcio - "o assunto não devia era ter sido falado! Agora vai ter de nos trazer uns para acompanhar o café" - impele-nos para os pastéis de nata cobertos de canela e açúcar em pó.
Condecorado pelo então primeiro-ministro António Guterres com a Medalha de Mérito Turístico e pelo antigo Presidente Jorge Sampaio com a Comenda de Mérito Comercial, Francisco Calheiros diz não ter filiação partidária e só se ter estreado na política à boleia da confederação, à gestão da qual chegou em 2008, então como vice-presidente. Nesse campo, não é difícil descortinar que gostaria de ver os partidos assumirem lideranças mais jovens, sem grandes (e más) bagagens. Reconhece que os há na maioria dos partidos mas o CDS tem vantagem. "Tem imensa gente válida, a começar pelo anterior secretário de Estado, Adolfo Mesquita Nunes, uma cabeça brilhante, bem arrumada e com muito boa bagagem; e Assunção Cristas foi notável, porque Paulo Portas era, para mim, o melhor político que tínhamos - e suceder-lhe era uma chatice."
Com a chegada do segundo café e o nosso encontro quase no fim, pergunto-lhe o que faz para se distrair e avento a hipótese do golfe. "Nem pensar! O golfe é meio caminho para a reforma." Ri-se, antes de responder que gosta sobretudo dos seus fins de semana em Almoçageme e de viajar - "nunca em época alta". As séries do Netflix e a leitura do DN estão entre os seus hábitos diários. "E nunca perco o noticiário das 20.00, mesmo quando chego mais tarde a casa: eu e a Rita pegamos no tabuleiro, sentamo-nos em frente à televisão e jantamos a ver as notícias." Abomina redes sociais - "são um cancro" - e se antes achava alguma graça às caixas de comentários, desde que a identificação deixou de ser obrigação que se "tornaram uma selvajaria".
Mas paixão, paixão, tem pelo Sporting, que vai ver jogar sempre que pode mas raras vezes para a tribuna: "Quando me convidam, sou obrigado a responder que não tenho educação para isso. Porque aquilo é irracional, uma pessoa transforma-se, às vezes tenho vergonha das figuras tristíssimas que faço." A dois dos netos fez o que o pai lhe fez a ele: tornou-os sócios um dia depois de nascerem - "os outros dois... o pai tem um grande defeito... é benfiquista". Francisco mantém-se membro do conselho leonino e em determinada altura até surgiu a oportunidade de ter um cargo na direção do clube: "Foi a única vez em que a minha mulher me abriu os olhos."
Para fechar o nosso almoço, resta-me pedir-lhe opinião sobre o alojamento local: nada contra. "É uma nova forma de turismo. As coisas evoluem, há um público para essa oferta e está a acontecer no mundo inteiro. A única coisa que tem de acontecer é oficializar-se o que existe: dar armas iguais a todos - regras, impostos, fiscalização, etc. Antigamente havia imensa gente a viver do juro, do arrendamento, mas hoje o dinheiro não rende. Muita gente que não tem idade ou conhecimentos para investir em produtos complexos, ir à bolsa, então compra casas e põe em alojamento local - há imensas famílias a viver disto e não me faz confusão nenhuma desde que as regras sejam cumpridas."
Quanto ao ano que agora começou, Francisco Calheiros espera o melhor, sobretudo graças à ajuda dos turistas norte-americanos e asiáticos, nomeadamente chineses, que aqui têm chegado muito graças à operação da TAP. "Há muitos desafios pequenos e grandes prioridades, como o aeroporto e a legislação laboral, mas 2018 tem tudo para ser um ano excelente."
Vela Latina
Pão, manteigas e paté
Água
1 copo de vinho tinto
2 fígados de aves
2 pastéis de nata
4 cafés
Total: 67 euros