O 'República' é do povo não é de Moscovo...

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Uma lágrima no rosto de Antónia de Sousa podia sintetizar o estado de espírito de uma vintena de jornalistas naquela madrugada de 19 para 20 de Maio de 1975 suspeitava-se que os leitores do República não voltariam a ler o editorial Momento, de Raul Rêgo, o De Vez Em Quando, de Vítor Direito, o Ponto Crítico, de Álvaro Guerra.

O exemplar que tinha chegado às bancas, antes das duas da tarde, em vez do nome de Raul Rêgo - o primeiro vulto de que Spínola se lembrara para ser primeiro-ministro logo após o 25 de Abril -, tinha impresso o do "camarada Álvaro Belo Marques", um director comercial que pedira a demissão uns dias antes e, agora, fora "eleito" pela Comissão Coordenadora de Trabalhadores (CCT) como director interino do jornal fundado em 1922 por António José de Almeida.

O conflito entre administração, direcção e redacção - um triângulo acusado de ter transformado o vespertino em órgão oficioso do PS - e o maioritário grupo dos operários gráficos e dos trabalhadores administrativos e comerciais - que o queria mais "pluralista" e a apoiar a revolução ("cada parafuso da nossa rotativa é uma afirmação popular, quantas vezes anónima, de uma permanente luta antifascista") - agudizara-se nessa manhã.

Os homens das máquinas e os seus aliados aprovaram uma moção a exigir a demissão do director Raul Rêgo, do director adjunto, Vítor Direito, e do chefe de redacção, João Gomes. Os jornalistas opõem--se, havendo só dois entre os 24 que se manifestam contra Rêgo. A CCT comunica, depois, à direcção que se devia considerar demitida e lança para as bancas a "edição pirata".

No interior do edifício da Rua da Misericórdia a tensão vai-se acumulando. Os redactores são informados de que, se saírem, não voltam a entrar. Resolvem ficar, talvez sem suspeitar que não irão almoçar antes das seis da manhã do dia seguinte. Há piquetes à porta, a barricar o piso térreo da tipografia e a acantonar a redacção no primeiro andar. O acesso à casa de banho, que ficava no outro lado da tipografia, foi vedado aos redactores e as taças desportivas que existiam no gabinete do director serviriam como substituto à sanita.

Rêgo telefonara a Soares e o líder do PS, ao saber que os sectores mais à esquerda queriam sanear a equipa redactorial, que mantinham sequestrada, diz que protestou logo junto de Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo. Perante a falta de resposta, os socialistas resolveram ir protestar para a rua, organizando uma enorme manifestação, marcada para as seis da tarde.

Às 19.30, oficiais do Copcon e da Polícia Militar entram nas instalações. O filme dos acontecimentos, registado pelo jornalista do Expresso Inácio Teigão (e reproduzido em O Caso República, de Francisco Costa e António Rodrigues), será vertiginoso. O chefe de redacção, João Gomes, ao abrir uma janela para se dirigir à multidão, lembra que foi intimado por um "cabecilha"a manter a vidraça fechada. A violência ficava nas palavras, duras como as barras de chumbo das máquinas da linotipia.

Numa foto que "ficou registada na História" e "correu mundo", como recordará Mário Soares a Maria João Avillez (Soares. Ditadura e Revolução, Público), o franzino Rêgo, "intrépido e determinado", saúda a multidão da varanda, com o punho erguido. "Rêgo amigo, o povo está contigo", grita a multidão, dirigindo-se ao vulto que, em Maio de 1976, receberá a Pena de Ouro da Liberdade, e "O República é do povo, não é de Moscovo".

Soares e outros dirigentes socialistas chegam às oito e meia. O líder do PS, uma hora depois, faz ali um comício. Quando o relógio do jornalista do Expresso está nas dez, Soares tenta entrar no jornal. "Isto aqui não é a sede do PS", comentam os operários. O secretário-geral do PS, que é accionista da empresa, como lembrará o jornalista Arons de Carvalho, tentará atravessar a porta mais duas vezes. Sem êxito.

"Em determinada altura", conta Soares a Avillez, "fui pessoalmente protestar junto do posto de comando das operações instalado perto da Igreja de S. Roque. Pelo rádio de um jipe militar, ouvi uma voz dizer 'Varram-me tudo isso à metralhadora!' O comandante, embora estivesse numa atitude de agressividade para comigo, respondeu ao comando vindo da rádio: 'Vem cá tu fazer isso, se és capaz!' Teria sido uma matança." Gomes Mota recorda (A Resistência, Expresso) que a jornada foi "manchada" pelo "despropositado tiroteio" dos militares que guardavam o República e dispararam uma rajada de G-3, "o que gerou uma confusão que me estatelou no chão".

Passa das duas quando o ministro da Comunicação Social, Correia Jesuíno, acompanhado pelo director-geral da Informação, Rui Montez, chega à Rua da Misericórdia. O jornalista Inácio Teigão anota as palavras do governante "Existe uma Lei de Imprensa que deve ser aplicada. E ela dá razão completa à administração desta empresa. Que tem todo o direito, a meu ver, de fazer o jornal que entender." O seu adjunto, César de Oliveira, quando já não for do MES mas do PS, registará, em Os Anos Decisivos (Presença) "Posso testemunhar que Correia Jesuíno fez esforços, quiçá contrariado por alguns sectores do MFA, sobretudo da Marinha, e do próprio Conselho da Revolução, para encontrar uma saída para mais esta crise, mas que, de facto, não surtiram qualquer efeito."

O ministro decide remeter a questão para os tribunais e, na sequência de um pedido formulado pelo próprio administrador, Gustavo Soromenho, manda selar o jornal. O velho dirigente socialista cometeu um erro de cálculo mais do que o recém-formado Conselho de Imprensa, o Conselho da Revolução, o IV e o V Governos, quem vai ter a palavra decisiva é Otelo: "Ao examinar o caso República a frio, eu via de um lado 152 trabalhadores, tipógrafos, e do outro um grupo minoritário de redactores, directores, administradores."

Às seis da manhã, os gráficos são evacuados em Berliets militares, os jornalistas libertados do sequestro e a manifestação dispersa. Chuvisca sobre Lisboa. No tórrido Verão que se aproxima serão vertidas muitas lágrimas de raiva.

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