O 'DIÁRIO' QUE GUARDA 60 ANOS DO MUNDO
Entre as cinco dezenas de livros publicadas por Miguel Torga estão 16 volumes do Diário, com um registo em quase duas mil páginas das voltas que o mundo deu durante os 60 anos que vão desde 1932 a 1993. É uma narrativa confessional inovadora em Portugal, país onde a diarística não era - e ainda não é - um género literário com uma grande tradição, e decerto que as suas páginas vieram a inspirar muito do que se veio a fazer.
Não se pode considerar que haja um único benefício destes registos do Diário torguiano, tal como o de conhecer melhor o autor que tanto se resguardou no silêncio das palavras - porque, passados 12 anos da sua morte, estes volumes podem ter múltiplos usos; desde a compreensão dos vários estágios políticos por que a história nacional passou até à visão, sob o característico olhar português, dos acontecimentos que marcaram a Península Ibérica e o resto do mundo, tanto a nível sociológico como cultural.
O Diário de Torga tem ainda uma diferença em relação à maioria das tentativas ensaiadas nesta área da literatura mundial, que é a inclusão de centenas de poemas que se substituem à prosa identificadora dos desígnios do homem e da natureza. Em Torga, as entradas que se vão sucedendo ultrapassam o autor e vão buscar outros cenários para completar o seu relacionamento com a sociedade em que se insere -e da qual se mantém quase bastante marginal -, tendo-o sempre como centro da acção, mas suficientemente imparcial para ser mais do que um actor, antes uma fonte histórica. Outra das perspectivas que se podem apreender destas páginas é a mudança de mentalidades no que respeita à relação do homem com Deus, do homem com os líderes políticos e os movimentos sociais e do homem consigo próprio. Talvez nenhum outro autor português tenha ido tão longe no questionamento da fé e no derrubar constante de figuras intocáveis, sempre sob o signo do respeito para com os cidadãos simples.
Diário I
1932 a 1941
Coimbra, 3 de Janeiro de 1932
Santo e senha
Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada. (...)
Coimbra, 6 de Fevereiro de 1932 - Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem reparo nela, nem ela repara em mim.
Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 - Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.
Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940.
Ariane
Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa. (...)
S. Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1940 - Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à Senhora da Azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.
Diário II
1941 a 1943
Monfortinho, 27 de Setembro de 1941 - Caçada na outra banda.
Coimbra, 28 de Fevereiro de 1942 - Fala-se da geração de 70. E logo toda a gente recita o velho estribilho: Antero e Eça. De Oliveira Martins, nada, claro está. Mas era de esperar. Numa terra de patrioteiros e de maus leitores, uma obra assim tinha fatalmente de ser esquecida.
Coimbra, 26 de Maio de 1942 - Mais um livro. Mais uma tonelada de energia perdida, que, gasta na minha terra a saibrar monte, dava pelo menos um milheiro de bacelo plantado. Mas pobre de quem tem uma chaga! Pobre de quem tem a mísera condenação de ser poeta, e de o ser aqui...
Coimbra, 22 de Junho de 1942 - Dizia-me hoje alguém: - Homem, se você pudesse ser na vida literária o que é na vida clínica - conciliante, passa- -culpas, carregado de perdão -, que maravilha!
Açor, Serra da Lousã, 26 de Outubro de 1942 - Aqui estou, no alto desta serra ondulada, sentado, a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto ou quanto perplexo dum descanso com perdizes à vista.
Coimbra, 13 de Novembro de 1942 - Peguei hoje por acaso num livro meu. Abri, comecei a ler, mas ao cabo de duas páginas desisti. Era tal a sensação de inacabado, de provisório e de rudimentar que tudo aquilo me dava, que fugi de mim próprio.
Diário III
1943 a 1946
Coimbra, 11 de Julho de 1944 - É preciso dar uma volta a esta minha poesia, ou desanda tudo numa choradeira de funeral. A depuração lírica que tentei não bastou, como se viu.
Arraiolos, 1 de Abril de 1946 - A diferença que existe entre o Alentejo e o resto de Portugal é que aqui o homem é dono da terra, e lá a terra é dona do homem.
Diário IV
1946 a 1949
Coimbra, 24 de Fevereiro de 1948 - Novamente me foi negado o passaporte para sair de Portugal. Prisioneiro!
Gerês, 17 de Agosto de 1948 - Leitura maciça de alemães. Goethe, Schiller, Eichendorff, George... Mas estes diabos dão-me sempre a estranha impressão de que estão a fazer exercícios de aplicação literária numa alta academia.
Diário V
1949 a 1951
Coimbra, 25 de Maio de 1949 - O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta a cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno.
Coimbra, 10 de Abril de 1950 - A vida é uma paixão inútil, diz o Sartre.
Coimbra, 23 de Maio de 1950 - A Queima das Fitas. Todos os anos a assistir a este espectáculo da janela do consultório, onde vivo enclausurado desde que as queimei também.
Pescara, 24 de Setembro de 1950 - Pior ainda que o fascismo é a herança que ele deixa. Cada italiano com quem falo é um Sorelzinho à deriva, um pobre herói stendhaliano desempregado.
Diário VI
1951 a 1953
Coimbra, 12 de Março de 1952 - Quem há-de explicar a estes pobres críticos portugueses que ficam sempre à margem da obra que criticam.
Coimbra, 15 de Dezembro de 1952 - Morreu Teixeira de Pascoais. Ao ler a triste notícia nos jornais desta carrancuda manhã de Inverno, fez-me bem a lembrança da recente e festiva tarde primaveril em que ajudei a coroá-lo de flores, na mais bela homenagem que Coimbra prestou jamais a alguém.
Diário VII
1953 a 1955
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1953 - Futebol. Muito devem gozar os deuses no céu, aos domingos! É impossível que também eles não sejam sócios, embora secretos, de qualquer clube cá da terra, e não assistam das nuvens a cada desafio.
Coimbra, 16 de Março de 1953 -
Mais um velho livro meu, a Montanha, que desfiz e escrevi de novo. Três meses a lutar com ele como se fosse um inimigo.
Coimbra, 19 de Agosto de 1953 - Antes de ir ver a Grécia ao natural, ando a estudá-la. Calhamaços e calhamaços de exegese à volta duma coluna dórica.
Roma, 4 de Setembro de 1953 - Na Sixtina, mais uma vez. E parece-me compreender, finalmente, o drama de Picasso. Depois disto, o quê? Só a pintura do feio, do monstruoso, do grotesco e desarticulado.
Argel, 14 de Setembro de 1953 - As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França.
Lisboa, 16 de Setembro de 1953 - A pátria tem pelo menos a vantagem de ser como a roupa velha: anda-se bem dentro dela.
Coimbra, 26 de Julho de 1954 - Embarco amanhã para o Brasil, e ainda estou mais aflito do que da outra vez...
Coimbra, 19 de Abril de 1955 - Morreu Einstein. E a maior significação desta desgraça é não ficar no mundo glória tão pura que se possa admirar, humanidade tão rica que nos dê consolação. O génio, nele, via-se com os olhos normais, e a grandeza do seu espírito tinha a nitidez de uma equação.
Diário VIII
1955 a 1939
S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1956 - Um dia terrível, de apocalipse. Minha Mãe morreu num fim de primavera feminina, e tudo se passou com poesia e flores. Meu pai finou-se ao entardecer dum inverno serôdio (...).
Coimbra, 23 de Julho de 1958 - Estes trinta anos de poder pessoal acostumaram-nos de tal maneira à canga, que só através doutro poder individual sonhamos, quando sonhamos, a libertação.
Coimbra, 10 de Dezembro de 1958 - Há vinte e cinco anos a lidar profissionalmente com a morte, e cada vez me sinto menos capaz de a compreender e aceitar.
Diário IX
1960 a 1963
S. Martinho de Anta, 26 de Dezembro de 1960 - Consultas e mais consultas a esta gente pobre, que parece guardar as mazelas durante o ano para quando eu venho. Ausculto, apalpo, dou remédios e prometo a cura.
Coimbra, 25 de Outubro de 1961 - Qualquer dia o sarcasmo vem já formulado no Diário do Governo: licença à oposição eleitoral para mais uma confraternização exaltada da impotência.
Coimbra, 16 de Janeiro de 1963 - Mais um jovem. Entrou a tremer, recitou alguns poemas a gaguejar, e acabou por sair calmo, senhor de si, com a bola do mundo na mão.
Gerês, 12 de Agosto de 1963 - É curioso: com tantos anos de iberismo na pele, e continuo a sentir a espinha arrepiada quando piso a raia espanhola!
Diário X
1963 a 1968
Arganil, 16 de Julho de 1964 - medicina, literatura e política, por ordem descendente. A obrigação, a devoção e a maceração.
Chaves, 18 de Setembro de 1964 - Onde pode chegar o aviltamento humano!
- Entregas-me as peles em Mairos. - A que horas?
- Às onze.
- As peles eram emigrantes clandestinos.
Lisboa, 9 de Abril de 1965 - Visita com a filha ao Jardim Zoológico. Eram horas de a iniciar no abc da ferocidade.
Lisboa, 22 de Outubro de 1965 - É uma dor de alma ver uma terra bonita como esta de servir de cenário a tanta coisa feia.
Coimbra, 2 de Fevereiro de 1966 - Morreu Buster Keaton. E com a sua morte apagou-se dentro de mim mais uma luz exemplar. O cinema foi o grande educador da minha adolescência.
Hospital de Arganil, 1 de Dezembro de 1966 - Acabei de operar, estou a fumar um cigarro e a pensar nas freiras que cirandam à minha volta. Bondosas, prestáveis, pacientes, injectam, fazem curativos, despejam, limpam. Mas sente-se que, embora presentes e funcionais pairam acima da realidade.
Coimbra, 30 de Março de 1968 - Nunca tal me havia sucedido, mas hoje aconteceu: oferecer um livro espontaneamente a uma pessoa desconhecida, feliz por o ter escrito.
Diário XI
1968 a 1973
A caminho de Lisboa, 26 de Setembro de 1968 - A rádio acaba de transmitir a notícia de que Salazar, em coma, foi exonerado e substituído na Presidência do Conselho. Na História do mundo nada aconteceu, mas na de Portugal acabou um reinado, uma época - trágica, como se há-de ver -, uma maneira específica de governar, qualquer que seja a vontade do sucessor.
S. Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1968 - É curioso como cada homem, em certos momentos, pode estar inteiro nos triunfos e nas falências dos outros homens! Desde que a Apolo XII partiu, que não consigo sentir os pés em terra firme. Tenho a sensação de que voo com os ocupantes da aeronave a caminho da lua...
Aveiro, 16 de Maio de 1969 - Congresso republicano. Mal entrei na sala e me sentei, aproximou-se um jornalista a pedir uma palavra para o seu jornal. E desiludi-o: - Desculpe, mas estou aqui como povo, e o povo, em Portugal, não diz nada.
Coimbra, 27 de Julho de 1970 - Morreu Salazar. Mas tarde de mais para ele e para nós, os que o combatíamos.
De avião, entre o Porto e Lisboa, 19 de Abril de 1972 - Baptismo do ar. De cinco mil metros de altura, olho a pátria espalmada, sem ossos, quadriculada, os rios parados, as cidades pintadas no chão, o mar pastoso, sem ondas e sem ruído, a babar-se no areal.
Praia do Carvoeiro, 20 de Julho de 1977 - Kafka. Parece impossível, mas está-me a saber bem devorar páginas de negrura humana no seio desta claridade panorâmica.
Diário XII
1973 a 1977
Luanda, 31 de Maio de 1973 - É pena. Falhámos por um triz. Bastava que tudo o que aqui fizemos fosse por outra intenção. Que cada um dos que vieram mar fora trouxesse a convicção de que ser angolano, moçambicano, guinéu ou timorense eram maneiras heterónimas de ser português.
Coimbra, 17 de Abril de 1974 - Jesus Cristo Super Star. Que perverso aproveitamento se faz hoje do inconsciente cristão, que, quer queiramos quer não, é uma herança de todos nós!
Coimbra, 25 de Abril de 1974 - Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania.
Coimbra, 27 de Julho de 1974 - Vamos finalmente dar independência aos povos colonizados. Uma independência que sem dúvida lhes irá custar cara, mas não há nenhuma que seja barata.
Coimbra, 25 de Abril de 1975 - Eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na pátria a maior consolação cívica que tive.
Coimbra, 23 de Novembro de 1976 - Morreu Malraux. Depois de desafiar triunfalmente o destino de todas as maneiras, acabou por se desafiar a si mesmo e sucumbir no duelo.
Diário XIII
1977 a 1982
Coimbra, 16 de Fevereiro de 1979 - Uma semana a lutar dia e noite com um poema. Consegui há pouco, finalmente, dar-lhe o remate. E foi um desconsolo quando o vi já sem precisar do meu esforço.
Diário XIV
1982 a 1987
Acapulco, México, 5 de Março de 1984 - Num sítio como este é que se pode avaliar plenamente a quota-parte de responsabilidade que a natureza às vezes tem na perdição humana.
Coimbra, 12 de Junho de 1985 - Ratificação no claustro dos Jerónimos da nossa entrada no Mercado Comum. Quem cá estiver daqui a alguns anos dirá se o acto oficial valia o heráldico cenário.
Coimbra, 14 de Novembro de 1985 - Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança.
Coimbra, 29 de Abril de 1986 - Explosão numa central nuclear russa. O número exacto de mortos e feridos ainda não revelado, uma nuvem radioactiva a cobrir a região e a invadir as nações vizinhas, a Europa em pânico.
Coimbra, 14 de Junho de 1986 - Faleceu Jorge Luís Borges. Parece que foi mesmo ele. Que desta vez não houve fingimento.
Diário XV
1987 a 1989
Paris, 18 de Junho de 1987 - A civilização no apogeu. Quando se vem da Índia e se desembarca nesta terra é que se vê a que baixeza social o homem pode descer e a que alturas pode subir.
Chaves, 14 de Setembro de 1987 - O Papa declarou na América que a Igreja "não é, nem pode ser uma instituição democrática". Que novidade!
Coimbra, 25 de Agosto de 1988 - Pavoroso Incêndio na Baixa de Lisboa.
Coimbra, 17 de Maio de 1989 - Grandes manifestações estudantis na China, a exigir democracia e liberdade.
Coimbra, 16 de Abril de 1990 - Morreu Greta Garbo. Foi uma espécie de gasosa feminina, com pouco álcool, que alegrava os sentidos sem os embebedar.
S. Martinho de Anta, 29 de Abril de 1900 - Vim ver a azálea e o negrilho. Ambos rejuvenesceram, depois de um pânico ameaço de morte. E quis, supersticiosamente, verificar de perto a ressurreição que alvoroçadamente me foi anunciada.
Diário XVI
1990 a 1993
Coimbra, 8 de Janeiro de 1991 - O mundo inteiro à espera do começo da guerra do Golfo. Pelo que se depreende dos preparativos, vai ser uma telenovela feérica para ver no fim do jantar, absurda, com cenas eventualmente chocantes, mas com um remate feliz.
Coimbra, 11 de Abril de 1992 - Outra vez hospitalizado. Pode-se enganar a vida. A morte é que não.
Coimbra, 7 de Maio de 1993 - Graças a Deus! Xanana Gusmão, condenado a prisão perpétua pelo tribunal às ordens do tirano indonésio, atirou à cara dos juízes serviçais toda a verdade da sua revolta contra a opressão e fidelidade à terra nativa.
Coimbra, 10 de Dezembro de 1993.
Requiem Por Mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos. (...)