Ao ilustrador Nuno Saraiva só lhe falta cantar o fado

Vencedor do prémio de Melhor Álbum do Amadora BD com <em>Tudo Isto É Fado</em>, Nuno Saraiva conta como mergulhou neste mundo.
Publicado a
Atualizado a

Durante muito tempo, Nuno Saraiva não gostou de fado. "Não me dizia nada", admite o ilustrador e autor de banda desenhada. "Reconhecia a voz fantástica da Amália, gostava do José Carlos Ary dos Santos, que é o grande poeta de Lisboa, e tinha em casa discos do Carlos do Carmo, que eu via mais como um cantor de reação política do que necessariamente como fadista." Mas, tirando isso, não lhe interessava muito.

Foi preciso um convite para fazer a capa de um disco duma coleção dedicada ao fado para que Saraiva começasse a descobrir este mundo. "Calhou-me o capítulo dos fados tradicionais e eu, inspirado numa exposição que tinha visto no Museu do Fado, decidi ir para o Instituto de Medicina Legal ver as tatuagens que pertenceram a marujos e estivadores de 1900 e que estão lá, conservadas em formol, pedaços de pele com fabulosos desenhos. É muito impressionante."

Essa experiência despertou-lhe o interesse pelo fado, não tanto enquanto espetáculo de tasca ou de sala de concertos, mas como vida. "Também comecei a ouvir fado, é verdade, mas sobretudo queria saber mais sobre aqueles homens e aquelas mulheres, o que os levava a cantar aquilo, como era o seu aspeto. Isso levou-me a investigar as origens do fado", conta.

[amazon:2016/11/nuno_saraiva_com_desenho_20161105221223]

Entretanto, há oito anos, Nuno Saraiva envolveu-se no associativismo, como voluntário da Renovar a Mouraria. Além de montar arraiais e carregar barris de cerveja, também coordenou a parte visual da associação e trabalhou no jornal Rosa Maria. "Foi nessa altura que comecei a criar uma linha de desenho mais fadista, e à medida que ia sendo aceite pela comunidade fui desenhando as pessoas do bairro, as tabernas, os amigos." Os fadistas também. Os seus desenhos começaram a aparecer nas paredes do bairro, em capas de revistas, em cartazes.

Essa experiência na Mouraria permitiu-lhe recolher muitas informações e histórias sobre o fado, mas Nuno Saraiva não se ficou por aí. Começou a fazer pesquisas mais profundas. Basta ouvi-lo contar algumas dessas histórias - de como a Severa seduzia os homens com a sua guitarra, que mais do que um instrumento musical era um brinquedo sexual, "colocava a guitarra sobre o colo e levava os homens a olhar para as suas pernas"; ou de como Fernando Maurício, que odiava ter de usar fato e gravata quando ia cantar aos restaurantes, é ainda hoje idolatrado na Mouraria - para perceber como o ilustrador é fascinado pela história (e pelas histórias) do fado. "Estou a fazer um livro, que já tem inúmeras páginas, sobre as origens do fado. Está em evolução, quero que seja quase um épico", revela.

Prémio para melhor álbum

Até lá, a investigação vai alimentando outros trabalhos, como a série Tudo Isto É Fado, publicada em 13 capítulos na revista Tabu do jornal Sol, entre dezembro de 2014 e março de 2015, e que no final do ano passado passou a livro, agora vencedor do prémio de melhor álbum nacional do Festival de Banda Desenhada da Amadora.

O livro começa com o encontro entre uma varina e um pescador no Mercado da Ribeira dos anos 1950. Pouco depois, no mesmo sítio, mas já neste milénio, ali está Mariza para dar um concerto, mas logo recuamos à infância da cantora na Mouraria.

E continua assim, num vai e vem entre passado e presente. Há um capítulo sobre Amália (cuja história há de ser contada com pormenor, um dia destes, num outro livro de Nuno Saraiva), outro sobre Carlos do Carmo (com uma homenagem sentida e ao mesmo tempo divertida a Bernardo Sassetti e a Ary dos Santos), mas também sobre a Rua do Capelão, Fernando Maurício, Camané e Alfredo Marceneiro, por exemplo. As histórias, embora com um toque de ficção, são maioritariamente verdadeiras - lidas nos livros, contadas pelos próprios, lembradas por alguém. O autor confessa que não se sentia "muito tranquilo em pegar nos vivos", mas depois conseguiu ultrapassar esse receio.

Nuno Saraiva vê este livro quase como um musical, pois vai contando histórias que falam do fado de hoje mas também do passado, e todas essas histórias são acompanhadas por música - fados até mesmo quando não são fados, como a Terça-Feira, de Sérgio Godinho. "O maior desafio, aquilo que me causou mais dificuldades e ao mesmo tempo maior entusiasmo, foi seguir o compromisso de que em cada página uma personagem iria cantar. Pelo menos uma fala seria uma citação de uma música, que depois é identificada. E isso deu-me imenso trabalho, tive de procurar as referências, saber se foi editado, o autor dos textos, da música, a editora, o ano..."

Um dos capítulos é dedicado aos poetas do fado, outro à guitarra portuguesa, e até há um capítulo dedicado aos desenhadores do fado, a começar desde logo pelos tatuadores, passando por Rafael Bordalo Pinheiro, José Malhoa (o quadro Fado será o tema do próximo livro de Nuno Saraiva, que será lançado ainda neste mês), Carlos Botelho ("que odiava o fado"), Stuart Carvalhais ou Almada Negreiros. E no fundo da página, montado num andaime, lá está o próprio Nuno Saraiva, a pintar o mural nas escadinhas de São Cristóvão, com tintas e pincel, enquanto um outro artista, mais novo, lhe pergunta: "Puto! Não preferes o spray, que é mais rápido?"

Ao mesmo tempo que viaja pela história do fado, o livro é também uma viagem pela cidade de Lisboa. Do Mercado da Ribeira às ruas apertadas da Mouraria, com passagem pelo Bairro Alto, a Feira da Ladra ou a Cerca Moura. Parte da viagem é feita num tuk-tuk conduzido por uma rapariga de cabelo preto, esvoaçante, e uma flor vermelha na cabeça. Ela vai aparecendo em vários capítulos e a sua história, a de uma menina que gosta de ouvir fado e se apaixona por um rapaz que lhe canta A Rosinha dos Limões e Teus Olhos São Dois Garotos, serve de linha condutora para o livro.

Neste percurso, Nuno Saraiva aprendeu que o fado é muito mais do que canções tristes com dor e saudade. "Fado vem da palavra grega que significa destino e o destino não tem de ser necessariamente mau." O fado também é alegria e paixão e sedução e erotismo. Como quando os dois apaixonados se encontram numa varanda sobre Lisboa e se beijam e ela lhe canta: "Perdi-me nos olhos teus como quem perde a razão."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt