Entre guiões e ensaios para as semifinais, Nuno Galopim, supervisor criativo da Eurovisão, jornalista e crítico de música, recebe o DN no Altice Arena para falar sobre o novo livro, Eurovisão, um compêndio-reportagem-manual que cruza música e história da Europa, para ter à mão nestes dias em que Lisboa é uma babel de 43 países, que se juntam para as semifinais e final do concurso de música mais antigo do mundo, a 8, 10 e 12 de maio..No final da conversa, e antes de se conhecer o regresso dos Abba às canções, conversa-se sobre o papel do grupo sueco na vitalidade musical do país, o segundo com mais vitórias na Eurovisão depois da Irlanda. "A música é uma das maiores exportações da Suécia, o que tem efeito no concurso", diz o antigo jornalista do DN, autor dos romances Os Últimos Dias do Rei, sobre D. Manuel II, e O Indesejado, sobre D. Afonso VI e do documentário Sem Fazer Planos do que Virá Depois, sobre a vitória portuguesa em Kiev..O livro chega às bancas no dia 4 de maio, a apresentação é adiada para depois da Eurovisão - a 2 de junho na Feira do Livro com Salvador Sobral, que assina o prefácio..Qual é a tua primeira memória da Eurovisão? Não me lembro de ter comprado, mas sei que tive o single com a canção do Luxemburgo de 1971, Pomme, Pomme, Pomme , da Monique Melsen, porque nesse ano, tinha 4 anos, recebi dois singles da Eurovisão. A vencedora, Severine, com a canção do Mónaco [Un Banc, Un Arbre, Une Rue], e eu pedi para me darem a canção do Luxemburgo. A memória que tenho de facto é do ano seguinte. De estar com a família num casamento em Castelo de Vide, de uma prima. Tive um acidente, caí com a mão numa braseira, e fiz uma queimadura, não muito grave, naturalmente, mas não deixei que me levassem ao hospital, porque nessa noite era o festival. O meu pai tratou-me da mão, está ótima [mostra a palma], e vi a emissão de 1972, ganha pela Vicky Leandros..O que é que o espetáculo tinha para um apreciador de música? Línguas diferentes associadas a países. Eu gostava de ver mapas, ver as capitais dos países, gostava de ver as bandeiras, e isto aliado a canções, Música era já o que mais me apaixonava nessa altura. De repente, estava ali o melhor de vários mundos..Que é o que fazes neste livro - Eurovisão - Dos Abba a Salvador Sobral. Canções que contam a história da Europa. O livro nasce em Kiev, mesmo antes de ter a certeza que o desfecho seria o de uma primeira vitória para Portugal. Ainda estávamos lá e eu liguei ao meu editor, Francisco Camacho [Esfera dos Livros], a dizer que valia a pena fazer um livro sobre a Eurovisão. Era a primeira vez que eu estava numa Eurovisão. Acompanho desde miúdo, mas nunca tinha estado em nenhuma. Ao estar lá, e tendo a consciência do que tinha mudado entre nós o Festival da Canção de 2017, o refocar de interesses dos portugueses na Eurovisão, e a atenção que a canção estava a cativar, pensei que estava na altura de contar estas memórias. Este projeto começou a nascer lá e foi em grande parte escrito no verão do ano passado..Quem te conhece diz que escreveste quase tudo de memória. .Não! Saber de cor não é conhecer. O que faço é pensar como a Eurovisão traduz a história política, social e musical da Europa..O que fazes é coincidir os momentos que a Europa vive e as canções . Por exemplo, em 1990... Há três canções nesse ano que refletem algo muito marcante do ano anterior - a queda do Muro de Berlim. Havia a canção da Noruega, da Áustria e da Alemanha. Sobre um monumento, sobre não querermos mais muros ou viver em conjunto. Outro exemplo, a canção alemã de 1982, Ein Bisschen Frieden, que surge como um cântico da paz numa altura em que a Europa temia a possibilidade de um conflito nuclear. Há sempre ecos de contemporaneidade espelhados na Eurovisão..Há outro exemplo no nascimento do Festival da Eurovisão (1956)..A Eurovisão nasce numa Europa que ainda tinha memória de estar em guerra. É curioso ver que uma das canções alemãs fala da necessidade de vivermos de outra maneira. Um dos cantores é um sobrevivente de campos de concentração..O Festival da Eurovisão nasce para unir o que está dividido....... E somar sempre. E a ideia de tolerância, diversidade, multiculturalidade tem vindo a ganhar força nesta etapa mais recente e hoje é um valor de base da Eurovisão. Tem a ver com o que é a essência da identidade europeia. Sociedades livres, democráticas, tolerantes, abertas..Avançando até 2017, Portugal ganha com a canção Amar Pelos Dois....... É uma canção que está claramente entre as melhores da Eurovisão. Se virmos uma sondagem num dos sites com maior números de visitas, o Eurovision World, está nas melhores canções de sempre dos últimos anos..Isto acontece no momento em que Portugal está na moda..Esta não foi a primeira boa canção que Portugal levou à Eurovisão, mas chegou numa altura em que havia a coincidência de este ser um país de que felizmente se fala bem. O Amar pelos Dois sobressairia sempre. É tão invulgarmente genial - da composição [Luísa Sobral], ao arranjo [Luís Figueiredo] e à interpretação [Salvador Sobral] - que sobressaíra sempre. mas sobressai de forma avassaladora por causa desta circunstância..Há o risco de uma canção tão boa fazer de Salvador Sobral o cantor de Amar pelos Dois?.O Salvador Sobral não é só o cantor de Amar pelos Dois. Esse é que é o problema. Pela forma como, infelizmente, a maior parte das programações de rádio fixam carreiras numa canção, quando muito duas, as pessoas ficam com a ideia de que canção e carreira são sinónimos. Não. É um episódio. E se escutarmos, a carreira do Salvador Sobral já existia antes, com o Excuse Me. E depois do Amar pelos Dois, ele já faz o projeto Alexander Search e já gravou o disco ao vivo do Excuse Me, está a preparar um novo disco. Quem for ver um concerto dele não se vai levantar só quando ouvir o Amar Pelos Dois..Salvador Sobral assina o prefácio. Surpreendeu-te a maneira como te viu quando te conheceu? "Nós os músicos precisamos de ter os críticos por perto", escreve..Achei um texto lindíssimo. Não me surpreendeu, porque é muito aquilo que ele é. É profundamente honesto com o que ele é. Há aí sentido de humor. Agora, a piada é que eu antes nunca tinha escrito sobre um disco dele. Conhecia-o mal. Comecei a conhecer melhor depois de o ouvir nos ensaios.