"Nunca pensei poder vir a ser músico"
Paulo Flores, autor de uma vasta discografia, comemora agora, junto dos fãs portugueses, 30 anos de carreira, com um concerto em Lisboa que servirá também para apresentar pela primeira vez ao vivo o novo disco Kandongueiro Voador, no qual alarga o universo musical a outros ritmos, como o hip hop ou o kuduro, numa "homenagem à nova geração de músicos angolanos", como revela nesta entrevista ao DN.
Se como cantava o Paulo de Carvalho, "10 anos é muito tempo, muitos dias, muitas horas a cantar", 30 anos, então, é mesmo muita música...
É mesmo muita música, tanta que nem dei pelo tempo a passar e de repente já lá vão 30 anos. O engraçado é que a música começou para mim quase como um consolo, uma espécie de comunicação que usava para combater a minha timidez. Nunca pensei poder vir a ser músico, muito pelo contrário, até porque a minha personalidade é totalmente o contrário disso. Lembro-me de que antes do meu primeiro concerto, há 30 anos, na Aula Magna, com o Paulinho Vieira e Os Tubarões, o meu pai teve de chamar uma namorada minha para me convencer a subir ao palco, porque eu estava em pânico [risos]. Nunca vi a música como uma forma de ganhar a vida, era apenas a minha forma de comunicar.
E porque é que um tímido decide comunicar assim com os outros, através da música?
Não sei, parece um contrassenso, mas a verdade é que acontece com muita gente e resulta. Aliás, passados uns anos era só em cima de um palco que me sentia bem. Ainda hoje é o local onde me sinto mais protegido, onde posso ser quem eu sempre quis ser. Mas naquela altura ainda não sentia nada disso, até porque eu só sabia duas notas e tinha muito receio da reação do público. Os meus dois primeiros discos foram feitos em lá menor, o que, visto a esta distância, é algo incrível, porque as pessoas continuam a ouvir e a dançar essas músicas até hoje.
E qual é o segredo desses discos então, senão é o virtuosismo musical?
Acho que tem que ver com o modo como eu compunha, como dizia através da música tudo aquilo que sentia e pensava, sem ter a noção de como aquilo tocava quem me ouvia. E do que não tinha mesmo noção era do contexto político daquela época. Tinha apenas 16 anos quando lancei o meu primeiro disco e 17 quando editei o segundo, ambos em lá menor, só no terceiro é que comecei a colocar mais uma ou outra nota [risos]. Nunca pensei que aqueles meus desabafos, tão espontâneos e até tão ingénuos, pudessem ter um impacto político e social tão grande em Angola.
De onde vinha esse sentimento crítico?
De ser um jovem de 17 anos, que se sentia incomodado por ver tantas diferenças sociais. Era algo que me entristecia muito...
Na altura vivia em Lisboa, certo?
Sim, vim para cá com 3 anos, com a minha mãe, mas o meu pai ficou e eu ia sempre a Angola durante as férias escolares. Mesmo quando estava cá, Angola estava sempre presente, através das minhas avós, que falavam em kimbundu, ouviam muita música antiga de Angola e comiam muito funge.
Mas porque é que optou logo, ainda adolescente, por essa vertente de intervenção política e social, que viria a tornar-se uma das imagens de marca da sua música?
Porque é algo indissociável da minha condição de ser humano, da minha relação com o mundo que me rodeava. Em Lisboa diziam-me "preto, vai para Angola" e quando lá ia estava sempre a ouvir "branco, volta para Portugal". Eu era apenas uma criança e vivi isso tudo de uma forma muito intensa.
Se tivesse de escolher um único momento destes trinta anos de carreira, qual seria?
É difícil. Mas se tivesse de escolher um momento talvez fosse o meu concerto dos 20 anos de carreira, em Angola, nos Coqueiros, que esgotou, com mais de 30 mil pessoas. Ver toda a cidade de Luanda a descer dos musseques para o Estádio, foi um momento memorável.
E como foi a relação com o poder em Angola, ao longo destes trinta anos?
Nem sempre foi fácil, é como eu digo neste disco, no tema Boca do Lobo. Aliás, este novo álbum foi todo feito a pensar muito nessa questão, porque durante alguns anos sentia que acabava por estar sempre muito próximo do poder, apesar das minhas letras. Também percebi que a maior parte das vezes, quando alguém nos aborda com a intenção de ameaçar ou amedrontar são quase sempre pessoas sem qualquer autoridade, a tentar fazer um trabalho que ninguém lhes pediu para fazer. São os chamados "bajus", que falam com a voz do dono, muitas vezes sem este saber.
Já foi abordado nesse sentido?
Sim, claro, mas tenho de dizer que nunca me senti verdadeiramente pressionado. Pelo contrário. Senti que a minha música acabou por ter uma importância que, mesmo dentro do círculo do poder, os fazia discutir algumas questões.
Também lhe disseram isso?
Sim, embora hoje cada vez menos. Como sempre disse, nunca me meti na política, a política é que veio meter-se na minha arte. Eu sou um mero contador de histórias e se as pessoas se reconhecem nelas tanto melhor.
E hoje ainda há quem faça isso na música angolana?
Claro que sim, há toda uma nova geração que já está noutro patamar, para quem o futuro já aconteceu. Tenho algumas músicas neste álbum, como a Boca do Lobo ou o Kandongueiro Voador, que são muito inspiradas nessas novas linguagens, do rap e do kuduro. Eles ficam contentes por perceber que os tentei acompanhar, mas, quando lá chego, eles já estão noutra. Este trabalho é também uma homenagem a essa nova geração de artistas angolanos.
É, portanto, um aniversário que não só celebra o passado, em palco, mas também projeta o futuro, com um novo disco no qual alarga o seu universo musical a outros horizontes?
Sem dúvida. E no mesmo local onde dei o meu primeiro concerto, na Aula Magna. É uma forma de olhar para o passado, sim, mas com um novo filho nos braços e todas as perspetivas de futuro que isso representa.