Ao lado do seu gato obeso, Alejandro Jorodowsky recebe-nos no seu escritório. O chileno radicado em Paris está entusiasmado com a sua vinda a Lisboa. Pergunta-nos pelo MOTELx e insiste que está curioso com os portugueses..É considerado o precursor do cinema das sessões da meia-noite. Consegue escolher um bom filme para se ver hoje numa dessas sessões de culto?.Agora já não existe esse tipo de filmes. Digo-lhe, o cinema está em crise! Os que fazem cinema de autor só sabem tratar os problemas sociais. As pessoas também só querem ver filmes que tratam de problemas sociais. Refiro-me às pessoas ricas que pagam o bilhete de cinema para ver as dores do povo. Depois, obviamente, sentem-se culpadas. O cinema está num beco sem saída..É também o pai da psicomagia. Para quem nunca ouviu essa palavra, como é capaz de a definir?.Trata-se de uma terapia psicológica que não tem raízes na ciência mas sim na arte. Passa pelo subconsciente artístico. Os médicos quando falam do inconsciente tentam dar explicações racionais, enquanto a psicomagia ensina o racional através do inconsciente e dos atos artísticos..Dos bloqueios do mundo moderno qual aquele que o incomoda mais?.No Ocidente o mundo moderno está dividido em duas partes: a material e a espiritual. Na espiritual, a religião separa o bem e o mal, explicando o que cada um é. Só que a Igreja, de forma falsa, dedicou-se ao espírito. Digo de forma falsa porque há ali muito dinheiro. Por outro lado, a ciência dedicou-se ao material, negando o espiritual. O corpo é tratado como uma máquina. Essa é uma forma de pensar caduca. Para mim, a realidade é um equilíbrio entre espírito e matéria, um não existe sem o outro. A luz não existe sem a escuridão. Para sabermos o que é o bem, temos de conhecer o mal. Todavia, a moda atual mais perigosa é a mentalidade dos preconceitos. Está na moda encher os cérebros das crianças de preconceitos. Vivemos dentro de uma prisão mental. As pessoas têm de se libertar de uma série de preconceitos..Quando está a fazer o tarot qual a pergunta que lhe fazem mais?.Todos perguntam pelo futuro. As mulheres perguntam muitas vezes: vou encontrar um homem? Respondo sempre que não leio o futuro e pergunto-lhes porque não o encontram? Perguntam-me: vou encontrar um trabalho? Respondo: porque não o encontras? Porque não queres trabalhar?!.Quão importante é trabalhar em cinema com o seu clã?.Os meus atores preferidos são os meus filhos. Trabalho em família, é normal. O clã Jorodowsky é uma família tão normal como uma família de advogados ou de talhantes. Os meus filhos ficaram artistas porque são filhos de um artista. Infelizmente, a tradição das famílias de artistas está em declínio aqui no Ocidente..Um dos seus grandes fãs é o cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn. O que acha do cinema dele?.Os seus primeiros filmes eram geniais. Fiquei muito feliz mas, depois, desviou-se. Vendeu-se à publicidade. Essa é a sina de todos os meus amigos com talento. Eles têm de ganhar a vida e, coitados, estão no cinema. Quando vives do cinema estás obrigado a vender-te a Hollywood. Vendes a alma, vendes tudo!.Outro dos seus fãs foi John Lennon. Qual a memória mais forte que tem dele?.Lembro-me de ter ido a sua casa em Nova Iorque tomar um chá. Além de mim, estava também convidado um autor de livros sobre a guerra do Vietname. Obviamente que a Yoko Ono estava lá. Quando lá cheguei, os três estavam a escrever uma canção e a fumar um charro, um charro gigante, maior do que um charuto cubano! O que me causou estranheza foi o facto de o John e a Yoko estarem permanentemente juntos. Quando o John foi urinar à casa de banho, ela foi com ele! Era um casal tão mesclado que me tocou muito..Nos seus tempos de artista de circo o que mais gostava de fazer?.Tudo. Até hoje nunca tive um chefe! Fui sempre um artista livre que acabou por fazer sempre tudo aquilo que me apeteceu. Posso dizer que nunca me vendi nem fiz nada por obrigação. Tudo o que faço é porque gosto. Se me perguntares pelos meus filmes, dir-te-ia que não mudaria nada. Fi-los de forma honesta e gosto muito de todos - é impossível dizer de qual deles gosto mais... É a mesma coisa que ter de escolher entre a cabeça, o coração ou o fígado....Não terá sido essa uma das heranças que trouxe dos tempos em que fundou o Mouvement Panique, importante movimento de arte performativa nos anos 1960?.A nossa grande herança foi termos criado artistas polivalentes. Antes, estávamos num tempo em que um poeta só poderia ser poeta, em que Dalí era apenas um artista surrealista. Nós quisemos que os artistas fossem totais e que pudessem fazer todas as artes. Incentivávamos a que o artista fizesse parte das suas obras, enfim, entrar dentro da sua obra. Eu próprio fui ator no El Topo. Agora podemos ver que existem muitos atores polivalentes..E com a sua banda desenhada, continua também a ter o mesmo prazer?.É a atividade que mais rendimento me traz. Tenho muito sucesso aí. Trata-se do meu ofício de arte industrial. Tento sempre criar esses livros com conteúdos que não sejam estúpidos, antes pelo contrário: que tragam valores internos e de busca. Penso sempre nos jovens que têm prazer com a aventura ou pessoas que procuram o entretenimento. Se os livros não são comprados, não posso continuar a escrevê-los. Um livro de BD tem de vender mais de 20 mil exemplares para ter lucro. Mas tenho prazer em trabalhar em banda desenhada..Qual o festival de cinema de que mais gosta?.No cinema, o evento que menos me atrai são os Óscares. É apenas um encontro comercial e industrial. Também não gosto do Festival de Cannes, que é uma espécie de Óscares - também se inclina perante as stars americanas, à red carpet e a todas essas idiotices..Que tipo de conselho daria hoje a um jovem artista surrealista?.Para nunca se vender! Dou sempre o conselho para não fazer arte para ganhar a vida. Que arranje um emprego paralelo e não deixe de perseguir o seu sonho artístico. Um artista surrealista tem também de fazer uma arte capaz de colocar os outros a sonhar..Como vê hoje o seu Chile?.O Chile nunca muda. É igual à Índia: está dividido em classes sociais, quase como castas. De um lado, os ricos, depois os militares, os comerciantes e, lá em baixo, o povo. Não há mudanças. Está preso à cordilheira, como uma ilha. Continuo é a admirar os mapuches. É um povo de grande profundidade e aí há verdadeira psicomagia. Pena serem tão maltratados....É um homem de muitos mandamentos. Sei que é fundamentalista da pontualidade. Qual a razão?.Quem não é pontual está no passado, está como o Chile. Eu vivo no presente..Continua a ser confundido na rua com o escritor Paulo Coelho?.Parece que sim. Devo dizer que o admiro porque é um grande comerciante. É alguém que descobriu que não podia escrever sobre as suas neuroses pessoais para ter sucesso como vendedor. Preferiu escrever sobre o que as pessoas esperam: temas espirituais. Divertiu--me muito quando acabei por assinar uns 800 livros para leitores dele que me confundiram..O que vai transmitir aos seus fãs portugueses no MOTELx?.Não sei ainda o que lá vou fazer. Quando vou aos festivais como convidado nunca preparo nada, embora esteja pronto para responder a tudo. Faço o que for preciso. Vou com muita curiosidade. Só estive em Lisboa uma vez, há muitíssimos anos, com o Marcel Marceau, quando ele esteve lá com um espetáculo. Recordo-me apenas de ser muito bonito e de encontrar um esoterismo muito interessante. Em Portugal havia um lado espiritual muito forte..O cineasta chileno falou ao DN sobre Santa Sangre e El Topo, os seus dois filmes que serão apresentados no festival MOTELx..Santa Sangre (1989) - Sábado, Teatro Tivoli, 19.00."Fiz esse filme numa altura em que tinha muitas dificuldades para filmar. Este filme foi produzido por Claudio Argento, que produzia os filmes de terror do irmão, Dario. Em geral, nos seus filmes, morrem sempre muitas mulheres. Ele queria que eu fizesse precisamente um filme sobre assassinos de mulheres. Perguntei-lhe por que razão não preferia que fosse antes uma obra sobre assassinos de avestruzes ou algo mais estranho, mas como estava há seis anos sem filmar, aceitei. Em vez de ser uma história sobre crimes, fiz antes um filme sobre apenas um crime. Só que esse crime é tão feroz que deixei o mundo aterrorizado! Na verdade, é sobre uma tentativa de curar a loucura. Tal como El Topo, foi difícil mostrar este filme.".El Topo (1970), Domingo, São Jorge, 16.05."Percebi com esse filme que o cinema é um negócio, uma indústria para ganhar dinheiro. O cinema não é arte. Fazem-se os filmes que as pessoas querem ver. Com El Topo quis fazer um filme que fosse pura arte. Claro, tive problemas de financiamento... Quando se sai da indústria há problemas. Os próprios cinemas não querem filmes de autor, dizem que não dão dinheiro. Com tudo isto, não arranjei salas para apresentar este filme, mesmo quando tinha estúdios como a Metro e a Universal interessados. O problema é que os seus departamentos de marketing não o sabiam vender. Acabei por ser eu próprio a descobrir uma sala em Nova Iorque que aceitou distribuir o filme à meia-noite, apenas com uma linha no jornal. O êxito foi tão grande que depois nasceram as sessões da meia-noite e com elas um estilo. Essas sessões abriram um campo para o cinema de autor e El Topo teve uma vida longa.".Em Paris