"Nunca me imaginei a ser padre que não fosse à maneira jesuíta"

Brunch com o Padre Francisco Mota, diretor do centro cultural Brotéria.
Publicado a
Atualizado a

A entrada para o edifício do centro cultural Brotéria fica numa das ruas mais confusas e, porque não dizê-lo, inenarráveis de Lisboa: passeios com menos de dois palmos de largura são disputados por milhares de lisboetas e turistas que caminham ora em fila indiana, ora, mais afoitos, a saltar para a estrada e a disputar o espaço com os automóveis, autocarros, motas, bicicletas com motor e trotinetas que por ali passam quase ao mesmo tempo.

Mas é nessa mesma rua, a de São Pedro de Alcântara, num palácio do século XVI que já foi habitação dos Condes de Tomar, sede do Royal British Club e da Hemeroteca Municipal de Lisboa, que me espera, no número 3, o padre Francisco Mota para este brunch. O espaço de entrada está atualmente em remodelação para receber em melhores condições (e mais bem organizada) a livraria Snob.

Passados um par de minutos, encontro o jovem padre jesuíta de camisa azul-clara, com as iniciais do seu nome bordadas no bolso, e calças de sarja. O ex-benfiquista (voltarei ao assunto mais adiante) guia-me pelos dois primeiros pisos do palácio para uma breve visita ainda antes de nos sentarmos para falar... e comer. Numa das salas foi possível ver um departamento de restauração de livros antigos, noutras, mesas ocupadas por muitos jovens, de diversas nacionalidades, acompanhados dos seus computadores pessoais. "A Brotéria é um local de portas abertas", reforça Francisco, apontando para a pequena multidão de estudantes naquela espaço montado à guisa de cowork.

Seguimos até ao pátio interior, no piso térreo, para o restaurante - que também é cafetaria. As árvores, o barulho da água a correr numa fonte encostada a uma das paredes e o chilrear de alguns pássaros fazem esquecer o caos do tráfego na rua por onde cheguei (e sobrevivi) havia então minutos.

Mal nos sentamos, uma garrafa de água com gás vem parar à mesa. E aí começamos a conversa para esta rubrica com uma pergunta um tanto óbvia, mas indispensável: "Sempre quis ser padre?" Francisco sorri e responde quase de forma automática: "É uma pergunta que funciona melhor quando é feita no contexto futebolístico, se queria ser futebolista em pequeno. Todas as crianças crescem com o entusiasmo por esse tipo de coisas. Mas efetivamente não, nunca pensei em ser padre. Venho de uma família muito católica, de ambos os lados, onde a relação com a Igreja era bastante natural, era uma obrigação naturalmente assumida, não imposta, era como ir à escola ou ir de férias. Mas nunca tive particular interesse pela religião enquanto religião - lembro sim a grande admiração pelos jesuítas que fui conhecendo nos campos de férias que fiz. Aliás, os meus pais têm ligação a outros movimentos da Igreja, estereotipadamente mais conservadores", explica. E reforça que a sua vida em criança foi "perfeitamente normal", em contraponto com alguns amigos que lhe contavam que em criança brincavam às missas. "Jogava à bola, brincava com Legos e Play- mobil e depois, a certa altura, achei que ia ser advogado, se calhar pela influência dos meus pais, que são ambos juristas, mas nunca tive nada que me chamasse para o sacerdócio." Contudo, a admiração pelos jesuítas era presente, reforçada, sobretudo, pela forma como tinham contacto com a realidade do dia a dia.

Recorda então que já na universidade, quando frequentava o 2.º ano de Direito, foi convidado para passar uma semana numa comunidade remota do país, a trabalhar para paróquias locais quase desertificadas. "Durante esses dias, numa manhã inteira de silêncio, para a qual não estava muito virado, fui ler a única coisa que apanhei à frente: o Novo Testamento. A minha perplexidade, na altura, e que me fazia questionar frequentemente, era por que razão pessoas tão normais decidiam ter aquele tipo de vida. Percebi isso quando li o Novo Testamento de uma ponta à outra e entendi que a história dos Evangelhos era muito diferente daquela que, em pequeno, tinha aprendido. E ao encontrar no Evangelho a força da palavra de Jesus, não episodicamente, mas no contexto narrativo desta vida, pensei pela primeira vez ser padre." Isso aconteceu num mês de abril, em julho fez um retiro de oito dias e em setembro entrou para os jesuítas. "Em seis meses estava tudo decidido", clarifica.

Isso fê-lo abandonar Direito e iniciar dois anos de formação no noviciado de jesuítas. "É um tempo para ler textos fundamentais da história da Companhia de Jesus e da Teologia da Igreja, é também tempo de oração e de trabalho em bairros menos favorecidos e hospitais. É um período para percebemos mesmo se é esse tipo de vida que queremos ou não."

Depois foi três anos estudar Filosofia, em Braga, onde tirou uma licenciatura. De seguida, dois anos dividido entre Lisboa e Oxford a fazer um mestrado em Teoria Política, e seguiu para abrir o polo de Maputo da Universidade Católica de Moçambique, onde esteve um ano. Depois disso seguiram-se mais três anos em Londres, a estudar Teologia, e mais dois anos em Boston, nos Estados Unidos, a estudar Ética Social. Agora, aos 39 anos, é diretor da Brotéria.

"Nunca me imaginei a ser padre de outra forma que não fosse à maneira jesuíta. É um tipo de vida, que vem desde o século XVI, da convicção de que Deus pode ser encontrado em todas as coisas, em toda a realidade. Era isto ou nada, como [Rainer Marie] Rilke nas Cartas a Um Jovem Poeta (1929), que diz a si próprio que morreria se não escrevesse. Comigo ou era isto [viver à jesuíta] ou nada."

Entretanto, e passados vários minutos de uma conversa longa e profícua, da qual o espaço deste jornal apenas permite transcrever o essencial, chega o brunch. As escolhas foram feitas pelo anfitrião: peixinhos da horta, pica-pau e burrata. A água com gás nos copos é reforçada.

E é sobre as especificações da Companhia de Jesus e a diferença para outras ordens católicas que a conversa continua. "De uma maneira um pouco mais teórica, a Companhia de Jesus define-se como uma companhia de padres eruditos, com estudos, que estão ao serviço do Papa e da Igreja e que são enviados para locais de fronteira, onde a Igreja não está, seja no campo das missões - como era nos séculos XVI, XVII e XVIII -, seja, atualmente, no plano intelectual. De maneira mais simples é usar uma frase do Papa Francisco (ele próprio jesuíta) que diz que os jesuítas são homens de pensamento incompleto. Olhamos para a realidade confiando que ela tem sempre algo novo e bom para trazer, façamos o que fizermos, trabalhando num bairro social ou numa universidade. E que Deus se revela numa realidade, e que a realidade está em construção e é incompleta e tem muito para dar e há bondade para ser encontrada em todo o lado."

Desafio a retórica do padre Francisco, contrapondo com o que se passa no mundo: as guerras, as injustiças sociais, a crise climática, etc. Prontamente o jovem padre responde exemplificando com o trabalho feito da Brotéria: "Procuramos lugares portadores de bem. Recentemente tivemos uma conferência sobre agricultura sustentável, questionado se a agricultura intensiva pode ser sustentável; tivemos outra conferência sobre a indústria da moda e outra sobre a importância de desenvolver interesse sobre coisas inúteis que servem para desenvolver as virtudes escondidas; ainda tivemos o ex-ministro das Finanças do Vaticano a explicar-nos como funcionam as finanças. Tudo isso com o ponto de vista de tornar evidente que o mundo não está condenado à destruição e que há lugares no mundo com imensa esperança e alegria - sem ingenuidade."

Quase sem tempo para provar os pratos que se encontram à nossa frente, continua a dizer que quando chegou para dirigir a Brotéria, o jardim onde nos encontramos não existia. "Quem vem ao Bairro Alto, ao centro da cidade, tinha de ter um espaço que não fosse hostil, que fosse bonito e onde pudesse estar tranquilamente à conversa sem sentir o rebuliço da cidade. É preciso mostrar, de todas as maneiras e com todos os pormenores, que no meio da confusão política que o nosso país vive, é possível encontrar a beleza, sobretudo nos detalhes e onde se encontra, como acreditamos, a identidade e a força de Deus." E também a hospitalidade, diz.

"As nossas portas estão abertas a todos, nunca perguntamos a ninguém quem é, se é crente ou não. Recebemos cerca de 50 mil visitantes por ano. Essa hospitalidade é para nós viver o Evangelho e é fundamental. E também buscamos a verdade, através das conferências, seminários, colóquios e cursos que nos ajudem a perceber o que é ou não verdade." E há ainda um terceiro ponto que sublinha: a relação com a beleza e o encontrar algo que nos transcende. "Um cristão que não pratique a hospitalidade, que não busque a verdade e que desconfia da beleza, como forma de revelação do criador, tem algo em falta."

Apesar da boa comida, do lugar idílico no meio da cidade, tal qual um pequeno oásis, há a pergunta incómoda que tem de ser feita: Nunca teve dúvidas de fé? Francisco responde à sua maneira. "A pergunta é mais se nunca tive certezas. Para mim a questão da busca incessante é fundamental, e isso vem, em grande medida, da minha relação fascinada com literatura, que tenho desde pequeno, mas fechar cenários de maneira irredutível... Tenho muita, muita, muita confiança naquilo que Deus é: misericórdia e paz. Mas tenho imensas dúvidas sobre o que isto quer dizer, na prática. A questão não é colocar em causa a doutrina da Igreja, mas sim o que significa e até onde nos leva. Quando era miúdo isso acontecia de forma mais juvenil, menos interessante, hoje em dia acontece de uma forma muito existencial, muito profunda. Lembro-me de um padre que estava na Cartuxa, em Évora, já muito velhote, que dizia que não sabia se iria morrer de idade ou de curiosidade. Sinto isso muito. Uma busca existencial do que se pode encontrar em Deus e como a Igreja pode crescer e servir. Dúvidas? Sim, permanentes, mas no sentido existencial de descobrir sempre algo mais."

Chegamos à parte de saber o que faz Francisco, homem, para além da vida de padre e da sua missão. "Gosto muito de ler Filosofia e, ultimamente, leio muita literatura anglófona contemporânea que toque na existencialidade." Além disso, aponta o seu gosto pela comida e pelos vinhos e pelas conversas "com pessoas e assuntos interessantes".

Para além dos interesses intelectuais, há os interesses físicos: pratica agora jiu-jitsu, depois de ter desistido de jogar futebol por causa dos joelhos. Mas gosta de futebol e é adepto e lança uma confissão desconcertante num país em que o futebol também é religião: "Abandonei o meu clube de infância, o Benfica, há uns anos. Era um sério e comprometido benfiquista, mas quando o Noronha Lopes perdeu eleições para Luís Filipe Vieira, aí decidi que o futebol não é nem família, nem religião, e não podia fazer parte de um clube que consecutivamente elege dirigentes evidentemente corruptos em detrimento de pessoas sérias e honestas, quer do ponto de vista moral, quer dos negócios. Nessa altura abandonei o Benfica. Não sigo o Benfica, nem sei o que se passa por lá, nem quem são os jogadores. Agora sou sócio do Estoril Praia, que sigo com alguma atenção. Às vezes vou ver jogos ao Estoril, mas se não vou também está tudo bem. O futebol ocupa hoje menos espaço na minha vida."

A terminar a conversa, o brunch e, ao mesmo tempo que pedimos o café, falamos sobre como eventualmente a juventude pode despertar para a tal "beleza que há em Deus". "Não há nada como uma experiência de autenticidade e de conhecer alguém que vive exatamente naquilo em que acredita. É daí que nasce tudo. Aquilo que a Igreja faz no campo da saúde, no campo social, dá-lhe legitimidade e credibilidade. A fé, para quem está de fora, é uma pergunta que surge para quem já se deixou impressionar por alguma coisa que viu. A Igreja precisa de fazer gestos nos locais onde estão as pessoas. Aqui na Brotéria estamos no meio da cidade, onde as pessoas estão. Thomas Halík disse que hoje em dia as igrejas estão vazias. Porque Cristo está noutros locais. Acreditamos neste modo de viver, não-encenado. Na equipa que aqui temos há crentes e não-crentes, com estados de vida e realidades diferentes, mas sobretudo reúnem-se em redor desta maneira de viver hospitaleira, que busca a verdade e que encontra na beleza a possibilidade de um significado que acrescenta algo ao mundo em que vivemos. Queremos que a Brotéria seja o lugar onde a fé cristã se encontra com as inquietações contemporânea e urbanas. Para nós é muito claro que temos a porta aberta sobretudo para escutar."

Antes de nos despedirmos, reforça com um regresso à doutrina: "Encontro nos Evangelhos o que não encontro no Great Expectations [Grandes Esperanças] do Dickens. Nos Evangelhos encontro também dimensão humana, mas muito mais do que isso."

filipe.gil@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt