"Nunca encontrámos uma pessoa a quem oferecemos uma casa que a recusasse"

É preciso tratar as pessoas com dignidade, diz Américo Nave. O presidente executivo da Crescer recusa o argumento de que o problema dos sem-abrigo é uma questão de saúde mental e de adições. "Subterfúgios", diz, para não se ver que o problema é a falta de um teto.
Publicado a
Atualizado a

Américo Nave foi um dos responsáveis de associações de apoio aos sem-abrigo que esteve presente na reunião com o Presidente da República. A mesma em que Marcelo Rebelo de Sousa pediu ao Governo que até final da legislatura, em 2023, crie condições para retirar todos os sem-abrigo da rua - estima-se que sejam cerca de seis a oito mil em todo o país. Em Lisboa, serão 2300, sendo que, destes, 361 dormem ao relento. Os outros não têm uma habitação mas dormem em centros de abrigo e albergues...

O diretor executivo da Crescer - Associação de Intervenção Comunitária considera que esse objetivo é alcançável, desde que para isso haja pragmatismo político e investimento. E dá exemplos, como o projeto Housing First para garantir quer há soluções com êxito, mesmo a pessoas que viveram 30 anos na rua. Porque entende que só tendo uma casa para viver, alguém poderá ter um projeto de vida, tratar dos problemas de adições, ter um trabalho.

É possível retirar os sem-abrigo da rua até 2023, como pediu o Presidente da República?
Achoque sim, para mim, não é uma dúvida. Já dissemos várias vezes que sabemos como. E o que é preciso é investimento.

Que tipo de investimento?
Neste momento, é financeiro. As organizações que estão no terreno têm demonstrado que, por exemplo, o modelo Housing First (uma casa primeiro) funciona com aqueles casos que estão numa situação crónica. Não há motivo para que as pessoas continuem a viver na rua. Há pessoas que fazem propostas de determinados modelos e projetos que são válidas, mas nós estamos a apresentar um projeto testado e com provas dadas em todo o mundo. Não estou só a fazer a defesa do Housing First, existem muitas respostas, como os apartamentos partilhados. O que é preciso é perceber as características das pessoas que estão na rua e ver qual a melhor resposta. Outra questão é que temos de apostar menos na emergência, isso devia ser a exceção e não o principal investimento. E mesmo a emergência tem de ter uma resposta mais qualitativa.

Tem havido falta de vontade política para resolver o problema?
Tem existido falta de pragmatismo da vontade política. Muitas vezes, o poder político não acredita que é possível que as pessoas deixem de estar na rua. Quando dizem que as pessoas estão na rua porque têm um problema de saúde mental, de adições, o que estão a dizer é que não querem resolver, estão a arranjar subterfúgios para não ver uma coisa muita clara: se uma pessoa está numa situação de sem-abrigo o problema é uma casa.

A intervenção do Presidente da República está a ajudar?
Acho que o Presidente tem feito um excelente trabalho. Acreditamos que se assim não fosse este problema não estaria tanto na agenda política e mediática.

É errada a ideia de que as pessoas estão na rua porque querem?
Isso é completamente errado. Ninguém quer estar a viver na rua. Nunca encontrámos uma pessoa a quem oferecemos uma casa que a recusasse. Vamos partir do princípio de que as pessoas têm um problema de saúde mental ou de adição. Isso tem de ser tratado com as pessoas num sítio digno, que é uma habitação. O poder político não pode querer resolver o problema das pessoas se elas continuarem a viver na rua, se não lhes derem primeiro uma habitação. Isso é do senso comum. Às vezes parece que dá jeito este discurso para que não se resolva nada.

A história da jovem que colocou um bebé no lixo também trouxe o tema para a agenda.
Infelizmente, não devíamos agir perante os casos. Devíamos agir para que os casos não acontecessem. Há uma questão que tem de ser cada vez mais colocada de forma pragmática: porque é que há pessoas que estão numa situação crónica a viver na rua? Não encontro ninguém que me responda a isto. Vêm dizer que é uma questão de saúde mental, mas nós temos demonstrado que funciona. Temos pessoas no Housing First que estavam na rua há 30 anos. Era importante perceber quantas pessoas morrem na rua. O nosso senso comum é de que morrem muitas, mas devia haver uma contagem oficial.

Qual tem sido o papel da Crescer a retirar os sem-abrigo da rua?
Temos tentado que exista uma resposta efetiva para estas pessoas, para que saiam da rua, por isso criámos o Housing First. A seguir, criámos o restaurante e as pessoas que lá trabalham não vivem na rua. Não se pode pensar num emprego quando as pessoas ainda estão a viver na rua.

Não ter uma morada para dar é um obstáculo para arranjar trabalho...
Não têm morada, não têm uma casa para tomar banho, não podem sentar-se no sofá e ligar e desligar o televisor quando querem, não podem comer o que querem. É muito importante eu chegar a casa e comer o que quero, desligar o televisor quando quero. E chegar ao sábado e ter de sair às 10 da manhã para a rua, depois de uma semana de trabalho, porque ninguém pode estar no centro... Sabemos que a maior parte das pessoas têm consumos abusivos de álcool, mas os centros de abrigo não permitem que entrem alcoolizadas. Eu posso ir beber copos com um amigo e deixam-me entrar na minha casa. Temos de ter uma lógica de tratar as pessoas com mais dignidade. Dizer que o problema é da saúde mental é quase dar um chuto na cabeça de quem acabou de cair.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt