"Numa semana assinei pelo Inter Milão e passei no exame de Patologia Cirúrgica"
No início dos anos 1960, Jorge Humberto jogava como avançado na Académica e frequentava Medicina na Universidade de Coimbra. Até que, no início do verão de 1961, um telefonema mudou-lhe a vida: do outro lado da linha estava o treinador argentino Helenio Herrera a convidá-lo para ir para o Inter de Milão. E assim foi, tornando-se o primeiro jogador português a representar um clube do principal escalão italiano. Esteve um ano no Inter e depois mais duas épocas no Lanerossi Vicenza. Apesar de ser difícil conciliar, foi fazendo ao mesmo tempo algumas cadeiras do curso de Medicina nas universidades de Milão e de Pádua. Acabaria por concluir a licenciatura quando regressou a Portugal e a Coimbra, onde tirou a especialidade em pediatria. O destino levou-o depois para Macau, onde ainda hoje reside. Contactado via telefone pelo DN, com o pretexto do jogo entre Itália e Portugal (Liga das Nações) marcado para sábado, Jorge Humberto, hoje reformado e com 80 anos, recordou alguns episódios engraçados da carreira de futebolista e de estudante de Medicina.
Foi o primeiro futebolista português a atuar no futebol italiano. Conte lá como é que um jogador da Académica é contratado pelo Inter Milão?
O ponto de partida de toda esta história é o Helenio Herrera, na altura o treinador do Inter Milão. Ele tinha treinado o Belenenses (entre 1956 e 1958) e conhecia bem o nosso futebol e alguns jogadores. Eu na altura jogava na Académica, as coisas estavam a correr-me bem e ele mostrou vontade que eu fosse jogar para o Inter. Mas colocou uma condição: eu tinha de fazer um jogo à experiência contra uma equipa jugoslava [Sparta de Belgrado], num torneio na pré-temporada. E com a autorização da Académica, lá fui fazer esse jogo.
E correu-lhe bem?
Muito bem, creio que marquei dois golos e ganhámos por 4-1. Não podia ter corrido melhor. E por isso fiquei.
O convite para jogar no Inter é feito pelo próprio Helenio Herrera...
Sim, ele ligou-me e na altura achei aquilo tudo um bocado estranho. Era um jovem, estava no meu quinto ano de Medicina, em época de exames. Jogava na minha Académica e para mim era a única equipa que existia. De repente recebo este convite pelo telefone... eu morava em Coimbra, numa espécie de república, com mais 15 estudantes, e aquilo de início pareceu-me uma brincadeira. A minha primeira reação foi dizer-lhe "deixe-se lá de brincadeiras, vá à sua vida". Estava desconfiado e pedi-lhe para me ligar outra vez. E ele ligou de volta. Depois da conversa fiquei convencido de que era mesmo ele. Mas, mesmo assim, disse-lhe que se tinha mesmo interesse em que eu fosse fazer aquele jogo, então que me enviasse uma confirmação do bilhete de avião. E olhe, uma hora depois tinha essa confirmação nas minhas mãos. Só nesse momento é que fiquei convencido a 100% e comecei logo a preparar-me fisicamente, pois estávamos numa altura de exames da faculdade e férias do futebol. E o tal jogo de experiência era daí uma semana.
E depois o que aconteceu quando chegou a Milão?
Olhe, tinha à minha espera o Luis Suárez. Depois fomos juntos para o hotel. Estivemos um bocado à conversa até chegar o Helenio Herrera. Falámos e combinámos tudo para o tal jogo que era dali a dois dias.
A ida para Milão obrigou-o a abandonar o curso de Medicina?
Estávamos em julho, agosto de 1961. Eu estava a fazer os exames de primeira época e já tinha programado deixar duas para outubro. O quinto ano é difícil, é o pior do curso de Medicina. Uma das cadeiras que tinha para fazer logo na altura era Patologia Cirúrgica, que era dada por um professor muito meu amigo, com quem fui falar para dar conta da situação, para que ele me autorizasse a ir fazer esse jogo e adiasse o exame. Fui a casa dele pedir-lhe para adiar o meu exame quatro ou cinco dias para assim poder realizar esse jogo em Itália. Ele aceitou. Numa semana assinei pelo Inter Milão e passei no exame de Patologia.
Mas durante o ano no Inter Milão nunca interrompeu os estudos. Conseguia conciliar as duas vidas?
Eu no Inter Milão tinha uma situação muito particular. Na altura só podiam atuar dois jogadores estrangeiros em jogos do campeonato e o Herrera já tinha o Luis Suárez (espanhol) e o Gerry Hitchens (inglês), em quem confiava. Estes dois eram elementos adquiridos e jogavam sempre. Eu só era chamado quando um deles estava impedido. No Inter joguei mais em jogos das provas europeias, pois aí eram permitidos três estrangeiros. Não consegui obviamente conciliar a 100% os estudos e o futebol. Apenas me dediquei a duas cadeiras. Conseguiu fazer uma no primeiro ano e a outra no segundo. Apesar da boa vontade não dava para conciliar na plenitude. Estamos a falar do Inter, um clube que lutava pelo título em Itália, onde a exigência era grande. Depois havia muitas provas e o tempo não era muito.
Está um ano no Inter e depois é emprestado ao Vicenza...
Sim, ao Lanerossi Vicenza. Aí sim, fui sempre titular. Quanto aos estudos, mudei da Universidade de Milão para a de Pádua, onde fiz mais duas cadeiras. Uma no primeiro ano, outra no segundo. Nesta segunda cadeira, de Clínica Cirúrgica, aconteceu uma história engraçada. Eu e mais quatro alunos fizemos a parte de prática, de observar o doente e fazer relatório, e no dia seguinte o exame oral. Estávamos os cinco à frente de três professores que nos faziam perguntas. Eu era o último a responder e limitei-me praticamente a dar resposta às falhas dos outros. Quando chegou a minha vez, o professor que me ia interrogar disse-me que por aquilo que já tinha dito já tinha o exame feito. Mas eu pedi para ser interrogado. Eles acharam piada e um professor fez-me uma pergunta sobre o cancro do estômago, um tema que eu dias antes tinha lido numa publicação do professor Fernando Oliveira, da Universidade de Coimbra. Descrevi tudo de alto a baixo e a minha nota foi 30 valores com louvor. O máximo que se pode dar.
Regressa depois à Académica em 1964...
Sim, depois de um ano no Inter e dois no Vicenza regressei a Portugal e, claro, à minha Académica. Na altura o Vicenza queria receber dinheiro pela minha transferência, mas a Académica não tinha condições para pagar. Mas a coisa lá se fez sem encargos para a Académica. Em Coimbra joguei mais uns três anos e acabei o curso em 1966. Depois fui para a tropa militar, para Angola, para o batalhão 2872.
Concluiu o curso e depois tirou a especialidade de pediatria...
Quando regressei de Angola fui então tirar a especialidade de pediatria no Hospital Pediátrico de Coimbra, que tinha excelentes professores. O professor Carmona da Mota, que era na altura o diretor de serviço de pediatria do hospital, foi o meu grande tutor, tirei a especialidade com ele. Depois fiquei a trabalhar em Coimbra uns anos. E às tantas aparece o convite para vir trabalhar para Macau.
Como surgiu esse convite e porque decide aceitar?
O convite foi-me feito por um colega que veio de Coimbra para Macau para ser diretor do Hospital de Macau. Ao fim de seis meses ele notou que havia graves falhas a nível da pediatria e conversou comigo. Foi uma longa conversa em que ele me fez ver que a minha presença seria muito importante. Macau, na altura uma colónia portuguesa, não tinha pediatras, o serviço estava muito em baixo e ele disse que precisava de alguém como eu para erguer um serviço. Depois de conversar muito bem com a minha mulher e os meus filhos, aceitei vir para Macau para fazer uma reforma na área da pediatria. E aqui estou ainda, embora já reformado.
Olhando para trás, tornava a fazer tudo como fez? Ou dava mais importância à carreira de futebolista?
A importância que eu sempre dei ao futebol resulta da educação que eu recebi. Já em Cabo Verde, em São Vicente, onde nasci, eu jogava na Académica do Mindelo, que é a sétima filial da Associação Académica de Coimbra. Aí comecei a jogar, fiz os meus primeiros progressos e concluí o sétimo ano do liceu. Depois vim estudar para Portugal (1955) e escolhi Coimbra. Mas ainda sem a ideia de jogar na Académica.
Então como é que surge a hipótese de jogar na Académica de Coimbra?
A minha família não tinha recursos, tal como de outros dois estudantes que estavam comigo e que tinham vindo de Cabo Verde. Eles arranjaram apoios e eu não tinha onde arranjar. Fui então bater à porta da Académica e disse-lhes que em dois meses ia deixar de ter o apoio do governo de Cabo Verde. Fui muito direto. Disse-lhes: "Ou os senhores me dão algum dinheirinho para eu viver ou então volto para Cabo Verde." Acabei por receber um apoio importante e suficiente, e comecei a jogar nos juniores da Académica. É um gesto do qual não me esqueço, pois simplesmente podiam ter recusado ajudar-me financeiramente. Por isso é que quando chegou a minha vez, quando me mudei para Itália, retribuí esse apoio.
Está a referir-se ao dinheiro que o Inter Milão pagou pela sua transferência na altura?
A Académica recebeu dinheiro do Inter pela minha transferência, mas eu próprio dei uma parte significativa à Académica a que tinha direito. Não interessa referir os valores. Mas posso dizer que foi uma quantia generosa.
Entretanto muitos outros jogadores portugueses jogaram no Inter Milão, casos do Paulo Sousa, Figo, Sérgio Conceição, agora o João Mário. Quando os via jogar lembrava-se dos seus tempos no clube milanês?
Sim, claro.
Cristiano Ronaldo. Que opinião tem dele, visto que também jogava como avançado?
Para mim é o maior de sempre, e estou a falar de todos os jogadores de futebol que apareceram. É um fulano que neste momento está a ser perseguido, não merece de todo os ataques que lhe têm sido feitos. Faço votos para que tudo lhe corra bem e que ele continue a mostrar ao mundo inteiro que é o melhor jogador de todos os tempos. Não há dúvidas.
E a seleção portuguesa, acompanha? Esperava ver Portugal sagrar-se campeão da Europa?
Acreditar, acreditamos sempre, mas foi algo inesperado. Segui o Europeu mais ou menos. Nem sempre é possível seguir aqui os jogos.
E dos jogadores atuais que atuam em Portugal, destaca algum?
Sinceramente não sei, não acompanho. Posso falar é do passado. Bentes, Duarte, Wilson, Maló, Rocha, Torres, Artur Jorge, Mário Campos, Vítor Campos, Rui Rodrigues, Ernesto... todos grandes jogadores, todos jogadores da minha Académica.