"Num ano mudaram muitas coisas em Cuba. Mas para pior"

Entrevista a Guillermo Fariñas, opositor cubano, prémio Sakharov 2010
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Cuba e os EUA anunciaram há um ano o início do diálogo e em julho reataram as relações diplomáticas. O que mudou em Cuba?

Num ano mudaram muitas coisas, mas para pior. Segundo as nossas contas, houve entre 400 e 700 detenções em Cuba em 2014 e, desde então, já são entre 900 e 1200 ou 1300. O nível de repressão aumentou, porque o governo cubano considera que é tolerado pelo governo dos EUA e tem que acabar com a oposição. Penso que o governo norte-americano não pôs qualquer condição ao governo cubano e este atua como as crianças mal-educadas que quanto mais presentes recebem, pior se comportam.

[citacao:O governo cubano e este atua como as crianças mal-educadas que quanto mais presentes recebem, pior se comportam]

Estamos a falar de detenções de curto prazo...

Sim, detenções de curto prazo, espancamentos, ameaças, incluindo apontar pistolas à cabeça dos opositores para que deixem de fazer certas atividades. Estou em Lisboa, mas sei que vários membros da oposição estão presos ou foram ameaçados por ocasião Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Não tem problemas em viajar?

Até agora não, mas a declaração universal dos direitos humanos é um todo. Não podem cumprir com o direito de entrar e sair do país, se depois me privam do direito à livre associação, a informar-me e a transmitir informações.

Então a abertura dos EUA foi pior para Cuba.

Do ponto de vista da repressão, sim. E económico. Há desabastecimento, até nas lojas que vendem em pesos convertíveis. Cuba está também num momento de colapso social: 52 mil cubanos entraram até ao fim de novembro nos EUA, há outros 27 mil que estão no México à espera de entrar, há seis mil retidos na Costa Rica... O governo está diante de uma crise migratória e humanitária porque os cubanos não conseguem encontrar satisfação e prosperidade no seu próprio país.

Cuba exige o levantamento do embargo, mas você é contra. Diz que isso seria uma traição. Porquê?

Não, eu falo de traição porque o presidente dos EUA, Barack Obama, me disse pessoalmente que antes de qualquer ação em relação a Cuba iria consultar a oposição interna. Não a consultou e estamos a sofrer as consequências. O tema do embargo divide a oposição: há quem seja a favor e quem seja contra. Eu defendo que o levantamento seja condicionado. Se o governo der passos para um Estado de direito, para uma democracia representativa, para aceitar a declaração universal dos direitos humanos, então que se levante. Mas se não se comprometer com isso, é um erro levantá-lo.

Acha que a oposição cubana será capaz de se unir um dia para concorrer às eleições?

Sim. Há vários partidos e organizações em Cuba, não estão é legalizados. Mas estão a dar-se os passos para uma união na diversidade. Na unidade do que nos une, deixando para depois o que nos separa.

O presidente Raúl Castro disse que planeia deixar o poder em 2018. Acredita nisso?

Sim, do ponto de vista formal vai deixar o poder, mas vai entregá-lo a Miguel Díaz-Canel Bermúdez [atual vice-presidente]. E o que a comunidade internacional não sabe é que Miguel Díaz-Canel está casado com uma neta de Raúl, faz parte da família Castro. Estamos a falar da transmissão familiar do poder, não de uma transição democrática.

Na Venezuela, a oposição ganhou as parlamentares. É uma situação que dá alento à oposição cubana?

Sim, sobretudo aos cubanos que estão desapontados e só pensam em fugir do país. O que está a acontecer na Venezuela mostra que é possível lutar contra ditaduras totalitárias e autoritárias desde dentro.

Já fez 24 greves de fome. Pensa voltar a fazer mais alguma?

Se o governo cometer um abuso que seja intolerável do ponto de vista da minha consciência, como ser humano, voltaria a fazer greve de fome. Posso ser conhecido pelas greves de fome, mas uso todos os métodos de luta não violenta. Simplesmente as greves de fome chamam mais a atenção mediática.

[citacao:Se o governo cometer um abuso que seja intolerável do ponto de vista da minha consciência, como ser humano, voltaria a fazer greve de fome]

Qual pode ser o papel da União Europeia para ajudar?

A UE tem interesse em ter boas relações com Cuba, mas está a exigir que o governo cumpra a declaração universal de direitos humanos. Houve uma reunião há pouco tempo que terminou sem acordo por isso. Penso que esse é o papel da UE. Exigir constantemente ao governo que cumpra com a declaração dos direitos humanos. Eles dizem cumprir, mas não cumprem.

Fazendo o papel de advogada do diabo, como responde à acusação de que é pago pelo exílio em Miami para fazer uma campanha negativa?

Digo que é verdade. Para mim é um orgulho que os exilados financiem algumas das minhas atividades. Não vejo mal nisso. Porque os pais fundadores da nação cubana, José Martí ou Antonio Maceo, viveram do apoio que lhes deram os exilados em Tampa, em Paris... E quem, se não o exílio, manteve e ajudou o movimento revolucionário de Fidel e Raúl Castro? Com que dinheiro se comprou o iate Granma? Com que dinheiro se compraram as armas? Com o dinheiro dos exilados. É cínico dizer que sou mercenário porque o exílio me ajuda. Eles estão a criticar uma coisa que eles fizeram no seu momento histórico.

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