"O fogo estava a seis metros da nossa casa. Tivemos que apagá-lo com as nossas próprias mãos, não havia ninguém para ajudar. Os bombeiros não podiam cá chegar." Numa manhã de sol de fevereiro, junto ao monumento da Independência, em Almaty, Bakhytgul, de 67 anos, recorda ao DN os dias trágicos do início da janeiro na antiga capital do Cazaquistão. A neta brinca no passeio enquanto a avó explica como a família de seis pessoas vive num prédio antigo, logo ali do outro lado da rua, com vista direta para o Akimat (o edifício da câmara), que foi totalmente incendiado. Foram dias de caos, onde ir à janela era um perigo, e que agora parecem saídos de um pesadelo..Dois meses depois, os cazaques ainda estão a tentar perceber o que aconteceu naqueles dias, em que protestos pacíficos no oeste do país contra o aumento do preço do gás de petróleo liquefeito (GPL) se alastraram a 11 regiões e culminaram em motins e violência e na morte de pelo menos 238 pessoas (incluindo 19 polícias e militares) e 4600 feridos. E aguardam com expectativa um discurso do presidente da República, Kassym-Jomart Tokayev, que no rescaldo dos acontecimentos prometeu criar um "Novo Cazaquistão"..O discurso está previsto para meados deste mês e deverá incluir uma anunciada reforma política neste país na Ásia Central, que no ano passado assinalou os 30 anos da independência da União Soviética. "Vai ser uma reforma sistémica de largo alcance", disse a um grupo de jornalistas europeus, convidados para visitar o país após os acontecimentos de janeiro, o secretário de Estado Erlan Karim, responsável por essa reforma..As reformas económicas, que passam por acabar com os monopólios que estavam na mão de uma minoria de privilegiados (muitos deles ligados à família do ex-presidente Nursultan Nazarbayev) ou criar um fundo para o qual as empresas devem contribuir - sendo o dinheiro depois usado em áreas como educação ou saúde -, foram anunciadas logo em janeiro, tal como uma reforma do sistema de segurança nacional, devendo ser aprofundadas este mês..Alegando que um dos objetivos das "ações armadas" de janeiro era "desacreditar" e "travar" as reformas que já estavam em curso desde que Tokayev chegou ao poder, em 2019, que facilitaram a realização de manifestações pacíficas, por exemplo, Karim explicou que a decisão passa contudo por "acelerar" essas mesmas reformas. "O objetivo fundamental é fortalecer as principais instituições políticas e garantir uma mais larga participação dos cidadãos nos assuntos do Estado", deixando antever uma maior abertura à oposição e uma reforma que permita aos cidadãos eleger os seus representantes locais (para já, só acontece nas pequenas localidades, sendo os autarcas nomeados pelo presidente). O partido no poder já mudou entretanto o seu nome de Nur-Otan (Pátria Radiante) para Amanat (Vontade Ancestral).."De Tokayev esperamos sempre o melhor. Dele estamos à espera que mude o país. É uma pessoa muito inteligente", conta Musina, de 65 anos, numa rua próxima da Praça da República, em Almaty. Num discurso empolgado, que quase não dá espaço para a tradutora, Anna Kuznetsova, acompanhar, explica que também viu os motins da janela, num prédio que dá para o edifício do canal de televisão KTK, e que ainda mostra as colunas de fumo negro que saíram das suas janelas . "Não podíamos sair para a rua", refere, alegando que naqueles dias muitos jovens estavam embriagados, porque andavam a distribuir álcool pelas ruas, além de armas.."Tokayev é da nossa cidade. Estava muito preocupado. Eu apoio-o por causa disso", diz, convicta, esta reformada, que não tem dúvida em apontar as culpas ao ex-presidente e "pai" da nação. No poder durante quase 30 anos, Nazarbayev tornou-se para muitos num símbolo de corrupção e do que está mal no país. "Ele acabou por revelar não ser digno do povo", diz Musina, lamentando que no final este e os seus familiares estivessem mais preocupados com o poder e o dinheiro. "A culpa de tudo isto foi do ex-presidente e do poder que ainda tinha", acrescenta, não hesitando em tecer as suas críticas, que outros parecem conter ou suavizar lembrando tudo aquilo que alcançou para o Cazaquistão..No cimo da Torre Bayterek, na capital, Nur-Sultan (antiga Astana, batizada em 2019 com o nome do ex-presidente), os visitantes ainda fazem fila e ignoram as regras contra a covid-19 para pôr a mão no molde dourado de Nazarbayev. Segundo a tradição, pedem um desejo. Na era dos telemóveis, as fotografias são obrigatórias. Desse momento e das vistas da moderna cidade, que se estende em todas as direções, desde o palácio presidencial ao centro comercial Khan Shatyr, a maior tenda do mundo, desenhada pelo arquiteto Norman Foster. Resta saber por quanto tempo irá a cidade manter o nome, já que nas bocas de todos se fala em voltar a chamar-se Astana (que em cazaque significa "capital").."O primeiro presidente continua aqui. O atual presidente deixou claro que temos que distinguir as suas conquistas dos seus erros", disse o secretário de Estado. "Erros que precisamos usar como lição para não serem repetidos", reiterando que não se podem esquecer as conquistas dos primeiros anos da independência - incluindo ter resolvido todos os conflitos fronteiriços (e partilha uma fronteira de quase sete mil quilómetros com a Rússia), ter mantido a harmonia entre os mais de 100 grupos étnicos (os cazaques, que são muçulmanos, são hoje a maioria, mas há uma importante minoria de russos) ou a política externa multivetorial. Esta permite que o país, que é o nono maior em área mas tem uma população de apenas 19 milhões de habitantes, mantenha boas relações com a Rússia, China, EUA e União Europeia..Por causa desta política, soaram alarmes no Ocidente quando, na resposta à violência, o Cazaquistão pediu ajuda à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OSTC) - uma aliança que inclui a Rússia e outras cinco ex-repúblicas soviéticas. Duas mil tropas destes países foram para o Cazaquistão com a missão de vigilância de edifícios governamentais e não de participar nas operações antiterrorista que Tokayev tinha então ordenado - não dispararam um só tiro. Foi a primeira vez que tal missão foi desencadeada, tendo ficado menos de 15 dias no país. O presidente rejeitou qualquer ideia de que tenha havido qualquer exigência ou pré-condição da parte de Moscovo ou que o seu país possa agora ficar em dívida, lembrando também que a OSTC "não é o exército pessoal do presidente Vladimir Putin"..Os resultados da investigação preliminar aos eventos de janeiro só devem ser conhecidos este mês, mas as autoridades dizem já ter uma ideia do que aconteceu. Alegam que os protestos pacíficos iniciais foram aproveitados, primeiro, por grupos criminosos e, depois, por "terroristas" para desestabilizar o país num ataque organizado. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Roman Vassilenko, num encontro com os jornalistas, falou mesmo numa tentativa de "golpe de Estado". Sem dizer quem seriam os interessados..Já o secretário de Estado disse que houve um ataque em "três ondas", que podia ter sido pior, alegando que se evitou uma quarta onda coordenada desde o estrangeiro por um extremista cazaque, que apelou a uma jihad - falando de um vídeo que teria sido partilhado pelas redes sociais antes de a internet ser cortado no país. Especialista em terrorismo, Erlan Karim indicou que o fenómeno não é novo, tendo havido ataques há uma década instigados na Síria ou Afeganistão. No total, cerca de 470 pessoas (em 737) estavam presas no fim de fevereiro por acusação de terrorismo, não sendo revelados muitos pormenores sobre elas..Ao longo dos acontecimentos, mais de 10 mil pessoas foram detidas, com relatos de tortura e abusos das forças de segurança. "O Cazaquistão condena qualquer possível caso de uso desproporcional de força, detenção ilegal, tortura e mau tratamento dos detidos", disse Vassilenko. A comissária para os Direitos Humanos, Elvira Azimona, reconheceu também que o elevado número de detenções causou problemas no sistema, com casos em que os detidos não tiveram acesso às refeições ou ficaram várias horas sem água. As autoridades estão a investigar 203 casos de tortura e abusos..As forças de segurança foram acusadas de responder tarde à situação - daí ter sido necessário recorrer à OSTC. Entre outros, o antigo chefe dos serviços de informação está detido, acusado de traição, tal como o ex-ministro da Defesa, por não ter cumprido o seu dever. Durante a violência, esquadras da polícia e lojas de caça foram assaltadas, tendo sido roubadas mais de três mil armas - das quais ainda só tinham sido recuperadas mil. Não é claro se as mortes foram causadas pelas forças de segurança - a determinada altura Tokayev deu ordem para disparar sobre os "terroristas" - ou pelos assaltantes..susana.f.salvador@dn.pt.O DN viajou a convite do governo do Cazaquistão.