Nova receita para perceber Putin: ir já ler Dostoievski
Henry Kissinger, tão chamado de guru da geopolítica como de papa da diplomacia, comparou Vladimir Putin a Pedro, o Grande. Joe Maiolo, do King's College, afirmou em recente entrevista ao DN que o líder russo atuava como uma espécie de Alexandre I, soberano que contribuiu tanto para a derrota de Napoleão como o duque de Wellington. E até Rui Machete, o nosso MNE, já disse que Putin se vê como um czar. Agora é Simon Serfaty a garantir que se "percebe melhor Putin a ler Dostoievski do que lendo o New York Times". O académico americano, especialista do CSIS, um think tank baseado em Washington, falava esta semana em Lisboa numa conferência sobre segurança transatlântica no Instituto de Defesa Nacional (IDN). Ora, se o presidente russo vai buscar inspiração ao século XIX, talvez mesmo ao XVIII (o do czar Pedro), porque insistem então alguns em falar de regresso da Guerra Fria quando se analisa a anexação da Crimeia, o apoio de Moscovo aos separatistas do Leste da Ucrânia ou a promessa de mais mísseis?
As culpas até podem ser apontadas ao próprio Putin, antigo agente do KGB que ascendeu em 2000 a senhor do Kremlin e que um dia classificou a desintegração da União Soviética como "a maior catástrofe geopolítica do século XX". Mas outra frase atribuída ao líder russo talvez seja mais esclarecedora sobre o seu pensamento, aquela em que diz que alguém que não lamente o fim da União Soviética não tem coração, mas alguém que imagine a sua ressurreição não tem cérebro. Ou seja, Putin não tem saudades do sistema comunista, lamenta sim a perda de poder (de território e de população) da Rússia, apesar de tudo herdeira formal da URSS, seja no que diz respeito ao assento no Conselho de Segurança da ONU, seja na posse das armas nucleares.
Mas mesmo que fosse um nostálgico da era soviética, e ter recuperado a música do antigo hino há de querer dizer alguma coisa, Putin tem perfeita consciência de que a Rússia de hoje não possui a força da antiga superpotência, extinta em 1991. Não só a população pouco cresce e está envelhecida, como as finanças do Estado dependem demasiado da exportação de petróleo e gás natural, sofrendo quando, como agora, os preços estão baixos. Mas o mais óbvio é que sem uma ideologia para contrapor aos Estados Unidos, a Rússia não tem apelo global, por muito que defenda a base naval na Síria, envie navios em missão à Venezuela ou renove os laços militares com o Vietname. Numa entrevista este mês ao Corriere della Sera, o líder moscovita não fez bluff quando desafiou os jornalistas italianos a publicar um mapa do mundo e a assinalar lá as bases americanas e russas. Antes tinha já chamado a atenção para o orçamento militar dos Estados Unidos ser "mais elevado do que o do resto dos países juntos", um ligeiro exagero, pois o SIPRI calcula que seja 39%, mesmo assim bem acima do da Rússia (5,2% do total global) e até da China (9,5%). E neste tipo de números o instituto sueco é de uma fiabilidade sem igual.
Voltemos então à Rússia imperial, a esse mundo do qual romancistas como Dostoievski e Tolstoi deixaram talvez os melhores testemunhos. Eram vastíssimos então os domínios dos Romanov, desde a Finlândia ao Alasca e até incluindo uma cidadezinha no que é hoje a Califórnia. Esse século XIX foi também o da conquista do Cáucaso e da Ásia Central. Mas mesmo assim não se tratava de uma superpotência, quando muito uma grande potência euro-asiática. Relembre-se que quando se quis impor no Extremo Oriente, a Rússia acabou por ser derrotada pelo Japão; e mesmo no continente americano, ainda antes de vender o Alasca, os czares já tinham sido avisados pelo presidente Monroe de que os Estados Unidos não tolerariam mais expansão.
É, pois, garantir o controlo hoje sobre o velho quintal que move Putin. E para isso os meios militares que possui chegam e sobram, como mostrou em 2008 quando invadiu a Geórgia em defesa dos separatistas ossetas e abecazes. E, de forma ainda mais impressionante, no ano passado, quando aproveitou o caos na Ucrânia para anexar a Crimeia, fortemente russófila.
Contrariar a atitude russa na Ucrânia exige firmeza por parte da NATO, aliança que nasceu como hostil a Moscovo e volta assim a ser vista pelo Kremlin. Regressemos a Serfaty no IDN. Disse ele que à firmeza há que adicionar inteligência, o que começa por saber procurar na história as analogias certas e não apenas aquelas que são fáceis, como a do regresso à Guerra Fria. O que não impede o académico americano de tirar uma lição importante daquilo que se passou na segunda metade do século XX: o valor da contenção, a terceira via entre a guerra e o apaziguamento. "Em 1914, a opção foi a guerra e correu mal; em vésperas da Segunda Guerra Mundial, escolheu-se o apaziguamento e também não resultou; depois de 1945 foi a contenção a solução e funcionou", sublinhou o americano, que alertou ainda para o não se empurrar os ucranianos para um conflito que "nunca poderiam ganhar. Só ser mortos".
Está Putin preparado para essa política de contenção? Sefarty, que elogia a aliança entre a Europa Ocidental e os Estados Unidos como a mais natural de todas, disse que a par da pressão convém haver alguma tentativa de sedução. E que isso, com russos e russas, não é tarefa menor, ironizou. Talvez ler Dostoievski e os clássicos russos seja mesmo a receita.