Nova ordem no feminino
Apesar de ter passado grande parte dos últimos oitenta anos imersa em lutas revolucionárias, até mesmo a renomada feminista Nawal El Saadawi se admirou com o papel desempenhado pelas mulheres no derrube do regime ditatorial do seu compatriota também octogenário, o egípcio Hosni Mubarak.
«Jovens mães dormiam com os seus filhos debaixo de tendas na Praça Tahrir - no chão, ao frio e à chuva. Amamentavam os filhos e não abandonavam a praça», conta ela.
Esta tem sido uma característica de todos movimentos pró-democracia que varrem o Médio Oriente: mulheres e raparigas nas ruas marchando lado a lado com os homens. Por causa disso, as feministas da região dizem que estas revoltas poderão vir a significar uma mudança radical para as mulheres, com a democracia em jogo não apenas nas instituições parlamentares, mas também em casa. Com o velho ditado feminista na cabeça, as mulheres árabes estão a certificar-se de que estas revoluções políticas são também revoluções pessoais.
Em directo pelo Twitter
Mozn Hassan foi uma dos muitos milhares de mulheres egípcias que ocuparam a Praça Tahrir entre 25 de Janeiro e 11 de Fevereiro. A directora de um grupo de direitos das mulheres, com 32 anos de idade, faz parte de uma nova geração de activistas, fluente no potencial organizativo das redes digitais. Twitando directamente das ruas do Cairo, ela relatou como as manifestantes carregavam cartazes proclamando «Nós somos raparigas da revolução» e, a 7 de Fevereiro, contava que «uma menina de cerca de 15 anos está a proteger um posto de controlo e a dizer: "Isto é responsabilidade minha".»
«As mulheres nestes protestos não estão a desempenhar apenas os papéis tradicionais, como cozinhar ou prestar cuidados de enfermagem.» Disse-me Hassan por telefone na semana passada: «As mulheres são activistas fundamentais nesta revolução. As mulheres criam slogans, as mulheres estão à frente e a defender os manifestantes.»
Também não foram apenas mulheres da classe média educada que tomaram conta das ruas. Uma página do Facebook intitulada «Mulheres do Egipto» criada para coligir fotos de mulheres rebeldes tomando parte nas revoltas mostra avós, meninas de escola, mulheres que usam o niqab e outras com a cabeça completamente descoberta. Para a activista de 25 anos Hadil El-Khouly, estas mulheres superaram as expectativas: «Elas estão a romper com muitos estereótipos sobre o que significa ser árabe e o que significa ser muçulmano. As mulheres árabes não são mulheres vitimizadas à espera de que o Ocidente ou os homens as libertem.»
No entanto, Hassan El-Khouly e outras «raparigas da revolução» enfrentam um desafio monumental. O Egipto definha num 125.º lugar dos rankings globais das desigualdades entre os sexos do Fórum Económico Mundial, o qual classifica os países de acordo com critérios económicos, políticos, de saúde e das disparidades de educação baseadas no sexo (o Iémen é o último da lista, a Islândia está no topo, enquanto o Reino Unido é o 15.º). A Human Rights Watch relata que menos de dez por cento dos deputados eleitos no Médio Oriente e no Norte de África são mulheres - as taxas mais baixas do mundo. Com um valor de trinta por cento, a região está no último lugar da participação feminina na força de trabalho formal; poucos países têm leis para proteger as mulheres da violência doméstica; e - na Jordânia, na Síria e no Líbano - há sentenças reduzidas para os assassinos de membros da família do sexo feminino que argumentem que a vítima os desonrou ao ser apanhada num acto sexual «ilícito».
Durante décadas os activistas dos direitos das mulheres têm pressionado para que haja uma mudança e têm acumulado vitórias importantes. O Egipto e a Tunísia trabalham com quotas parlamentares para as mulheres e, entre 2003 e 2005, no Iémen, no Egipto e na Argélia foram concedidos direitos iguais de nacionalidade às mulheres. No entanto, El Saadawi (que é também escritora além de activista pelos direitos das mulheres) sustenta que os regimes «patriarcais e capitalistas» da região têm sido um desastre implacável para as mulheres.
«Sob tais ditaduras, quer sejam políticas ou religiosas, as mulheres sofrem», diz ela. «As mulheres são obrigadas a usar véu, forçadas a não completarem a sua educação, são espancadas pelos maridos. O tribunal de família do Egipto é um dos piores tribunais em todo o mundo árabe. O meu marido pode casar com quatro mulheres.»
Mulheres exigem nova ordem
Além disso, segundo um relatório da Fundação Europeia de Formação, as mulheres constituem quase metade do total de matrículas do ensino superior no Egipto, mas até 2007 apenas 24 por cento estavam na força de trabalho pago. A taxa de desemprego das mulheres é de 18,6 por cento, em comparação com 5,6 por cento para os homens. Embora a libertação das mulheres esteja intimamente ligada com a democratização, a igualdade entre os sexos está longe de ser uma consequência inevitável de uma revolução democrática. É por isso que as mulheres que dão a cara nas ruas do Cairo, Tunis e Argel estão a tentar estabelecer a sua própria agenda - reivindicam o direito a uma ordem nova. Hassan afirma: «Temos de mostrar a toda a gente que temos as mesmas exigências que todos os homens e todas as crianças. Mas, além disso, temos a nossa agenda. É importante que os direitos das mulheres sejam vistos como fazendo parte da agenda política.»
A sua organização está agora cheia de trabalho, com outras activistas de direitos das mulheres atarefadas na elaboração de uma lista de exigências que elas acreditam que deverá ser fulcral na agenda da democratização pós-Mubarak. No topo da lista até agora está «a real participação política para as mulheres», «o tratamento do assédio sexual e da violência contra as mulheres de uma nova forma», e «a alteração das leis de maneira a estas serem mais sensíveis à diferença de sexo».
Mas qual é a probabilidade de estas reivindicações serem levadas a sério? Anne-Marie Goetz, conselheira-chefe do Fundo de Desenvolvimento para a Mulher das Nações Unidas, diz: «É bem possível que possa haver um salto qualitativo na promoção dos direitos das mulheres. Mas para que isso aconteça, é muito importante que esta oportunidade seja vista sob essa perspectiva.»
Vejamos, por exemplo, os processos de reforma eleitoral e constitucional que se seguem a um levantamento revolucionário democrático. Segundo Goetz, eles «devem estabelecer disposições especiais para garantir a participação plena das mulheres. Isso é absolutamente essencial, porque geralmente não acontece de forma automática». Até agora há sinais promissores na Tunísia de que as vozes das mulheres estão a ser ouvidas nas novas estruturas democráticas emergentes, com as mulheres representadas em cada uma das três comissões criadas para supervisionar a transição.
No entanto, Lilia Labidi, a recém-nomeada ministra dos Assuntos das Mulheres no Governo Provisório da Tunísia, não é complacente. «Agora, mais do que nunca, as mulheres têm de defender os seus próprios direitos e escolher o partido político que seja melhor para os seus direitos. A situação é complexa. Não sabemos quais são as posições dos partidos sobre estas questões.»
Fim ao assédio sexual
No Egipto, o pó ainda não assentou na Praça Tahrir e permanecem as perguntas sobre o regime transitório. Mas algo aconteceu nas ruas do Cairo, entre 25 de Janeiro e 11 de Fevereiro, que pode ser decisivo na luta para incorporar uma agenda feminista no novo Egipto: as mulheres vislumbraram o que é possível fazer-se. Antes da rebelião, o assédio sexual em locais públicos - especialmente nos grandes eventos - era endémica. Uma pesquisa realizada pelo Centro Egípcio para os Direitos das Mulheres, em 2008, descobriu que 83 por cento das mulheres tinham sido expostas a algum tipo de assédio sexual, incluindo serem apalpadas e abusadas verbalmente.
Mas, de acordo com Hassan, houve uma mudança notável durante a revolução. Quando os protestos começaram, «encontrámos mulheres por todo o lado nas ruas. Não houve assédio sexual nos protestos. Pelo contrário, as pessoas estavam realmente a respeitar as mulheres.»
El-Khouly concorda: «Eu nunca me senti tão segura no Egipto como quando estava no meio das multidões. As pessoas não estão apenas a pedir para mudar o regime. Elas próprias estão a mudar.»
Ninguém afirma que o assédio sexual foi definitivamente derrubado juntamente com Mubarak, e não há dúvida de que o desafio enfrentado pelas feministas para desbloquear os ganhos substanciais para as mulheres possibilitados pelo «despertar árabe» continua a ser enorme.
Outro factor para as mulheres é o crescimento de partidos islâmicos: no caso do Egipto, a Irmandade Muçulmana. Mas essa preocupação, criada em grande parte pelos meios de comunicação ocidentais, é vista com profunda desconfiança por parte das activistas feministas na região. Os clamores que vêm das ruas não são a pedir estados islâmicos, mas sim estados democráticos. Hassan considerou que «quando a revolução começou, não os víamos. Eles não dominaram a revolução, eles não dominaram as ruas. Pelo contrário, pela primeira vez, eles estão a aceitar mulheres laicas.»
El Saadawi, uma militante laica lendária cujo nome fazia parte de listas de condenados à morte emitidas por grupos fundamentalistas, contou-me como líderes da Irmandade Muçulmana se tinham até aproximado dela durante as manifestações para lhe demonstrarem o seu respeito: «Eles vieram ter comigo e cumprimentaram-me. Disseram-me: "Podemos divergir de algumas das suas ideias, mas respeitamo-la, porque você tem princípios".»
As mulheres e raparigas que desembocam nas ruas do Médio Oriente estão, como os seus compatriotas, a pedir as suas nações de volta depois de décadas de brutalidade política, física e económica. Mas com cada passo de desafio elas estão também a destruir estereótipos, a abrir novas oportunidades para promover os seus direitos e a expor verdades vitais - e a calmaria no que respeita ao assédio sexual na Praça Tahrir foi decididamente um grande passo em frente.
As mulheres da revolução sabem o que é possível. E agora elas têm a prova.