Nova Iorque, Edgar Allan Poe e Warhol pela música de Lou Reed
Há quem garanta que foi Lou Reed quem tornou o rock numa música para adultos. Também há quem defenda que os Velvet Underground foram a resposta de Nova Iorque aos Doors de Los Angeles e que Heroin, música do disco de estreia, foi o primeiro grito de oposição aos floreados hippies. De aspirante a escritor, a intérprete e compositor, de heroinómano a praticante de Tai Chi, Lou Reed começou a carreira com Andy Warhol e fechou-a a gravar uma ópera alemã em estúdio com os Metallica. Agora, quando se completam dois anos da sua morte, é lançada a caixa Lou Reed: The Sire Years, com os oito álbuns a solo libertados pela editora nova-iorquina e muito da sua história transformada em canção.
Quando aos 17 anos os pais o chamaram para uma visita ao médico, Lewis Reed não suspeitava o que esperava: uma sessão de tratamentos com choques elétricos para, contaria já como Lou, lhe curarem a homossexualidade. Aspirante a escritor, nesse dia perdeu a memória recente e ganhou uma marca para a vida. Na universidade descobriu a heroína e as anfetaminas e a trabalhar para uma editora pop conheceria John Cale com quem viria a viver e fundar os Velvet Underground - o grupo que asseguraria a banda sonora para os eventos de Andy Warhol entre 1966 e 1967. Mas se o artista plástico até lhes desenharia a icónica banana amarela em fundo branco para a capa do disco de estreia, só a solo chegaria o sucesso comercial. Com Transformer e os seus dois maiores sucessos, Perfect Day e Walk on the Wild Side - a música em que canta a histórias do travesti mais conhecido das festas de Warhol -, Lou Reed abriu o seu caminho. Logo depois, haveria de mostrar que o trajeto seria tudo menos linear e que o sucesso nas tabelas de vendas era a menor das suas preocupações. Logo em 1973 edita Berlin, um disco conceptual com a história de um casal condenado, entre depressões, ameaças de suicídio e drogas, e no ano seguinte Sally Can"t Dance, o disco em que conta a traumática ida ao médico com os pais (Kill your sons). Um ritmo frenético que o levaria a deixar mais de vinte discos de originais, mas que nem por isso o tornaria menos polémico ou mais consensual.
Nascido e criado na classe média de Nova Iorque, em 1989, na estreia com a Sire, Lou Reed dá o nome da sua cidade ao disco em que volta a exibir a sua melhor forma. E dessa vez o enredo varia entre o negro da epidemia de VIH que então varria a cidade (Halloween Parade) e as dúvidas da paternidade (Beginning of a Great Adventure). Depois, em 1990, volta a gravar com John Cale, Songs for Drella, um disco completamente dedicado a Andy Warhol, falecido três anos antes. E a morte ainda voltaria a ser o tema central do terceiro disco na Sire (Magic and Loss) antes do bem mais animado Set the Twilight Reeling (1996). Quatro anos depois chegaria Ecstasy (2000) e o regresso à distorção nas guitarras, ao sexo e às relações mal resolvidas e em 2003 com The Raven o regresso aos projetos mais afastados do mainstream - um disco baseado na obra de Edgar Allan Poe e com colaborações de David Bowie, Ornette Coleman e até dos atores Willem Defoe e Steve Buscemi. A completar a caixa agora lançada estão dois concertos - um semi-acústico com um alinhamento transversal à carreira (A Perfect Night: Live in London) e Animal Serenade, gravado em 2004 na paragem em Los Angeles durante a digressão de Raven.
[citacao:Trocou heroína e anfetaminas pelo Tai Chi, mas foi sempre polémico]
Falecido a 23 de outubro de 2013, com 71 anos, Reed já tinha trocado a heroína e as anfetaminas por exercícios de Tai Chi, mas nem por isso deixara de ser polémico. Editado dois anos antes da sua morte, o seu último disco, Lulu, entraria para o top das suas jogadas mais arriscadas: uma ópera alemã do século XIX, declamada com os Metallica a tocar ao fundo. Uma mistura inesperada e mal ensaiada, que acabaria por ser a sua despedida. E mesmo hoje, Reed continua a gerar polémica. Na sua mais recente biografia, Notes from the Velvet Undeground: The Life of Lou Reed, de Howard Sounes, a história ganha contornos ainda mais negros dos que contados nos discos. A ex-mulher Bettye Kronstad conta que foi vítima de violência doméstica, um amigo de escola lembra que o viu bater em namoradas e até um antigo agente, Paul Morrissey, o descreve como "uma cabra odiosa ou a pior pessoa que alguma vez viveu". Amado e odiado, poeta e punk, cantor e guitarrista, compositor capaz de gravar o mais pesado dos discos ou a mais reconfortante das canções, Lou Reed continua por perceber.