Nova Constituição cubana reconhece propriedade privada sem abandonar comunismo
Os cubanos votam este domingo o texto da nova Constituição, que visa substituir a vigente, aprovada em 1976. O texto que é submetido a referendo reconhece pela primeira vez a necessidade de investimento estrangeiro e da propriedade privada, sem renunciar ao socialismo ou ao comunismo, e cria as figuras do presidente e do primeiro-ministro, sem modificar o sistema político do partido único. De fora ficaram os casamentos homossexuais.
Se o governo faz campanha pelo "sim", opositores e associações de Direitos Humanos apelam ao voto no "não". Em 1976 a Constituição foi aprovada por referendo com 97,7% dos votos, tendo 5,6 milhões de eleitores votado a favor e apenas 54 mil contra. Agora, a maioria dos analistas acredita que a nova versão vai passar com uma margem menor.
"Desta vez, diria que cerca de três quartos da população vão votar sim", disse à Reuters Rafael Hernandez, um analista político cubano e editor da Temas, uma revista cultural orientada para as reformas. "Estamos habituados à ideia de que se algo não tem 98% não há consenso, apesar de noutros países ganhar com 65% ser imenso", acrescentou.
A nova Constituição visa substituir a vigente, aprovada em 1976. O texto que é submetido a referendo este domingo reconhece pela primeira vez a necessidade de investimento estrangeiro e da propriedade privada, sem renunciar ao socialismo ou ao comunismo.
"O Estado promove e dá garantias ao investimento estrangeiro, como elemento importante para o desenvolvimento económico do país, com base na proteção e o uso racional dos recursos humanos e naturais, assim como o respeito à soberania e independência nacionais", lê-se no artigo 28.
O texto inicial não incluia referências ao comunismo, mas após um processo de consultas em toda a ilha e no estrangeiro, voltou a estar incluída. "Nós, o povo de Cuba, (...) convencidos de que Cuba não voltará nunca ao capitalismo como regime sustentado na exploração do homem pelo homem e que só no socialismo e no comunismo o ser humano alcança a sua dignidade plena", lê-se no preâmbulo.
As consultas para que os cubanos pudessem dar a sua opinião duraram três meses. No final, alteraram-se 134 artigos do projeto inicial (por vezes mudou-se só uma palavra), foram eliminados três artigos e 87 continuaram sem mudanças. O texto final foi aprovado a 22 de dezembro no Parlamento cubano.
O texto cria as figuras do presidente (eleito a cada cinco anos pela Assembleia Nacional, com limite de dois mandatos, devendo ter menos de 60 anos antes da primeira eleição) e do primeiro-ministro (nomeado pelo presidente e responsável pela gestão do dia-a-dia do governo). Mantém-se o presidente do Conselho de Ministros, cargo que será ocupado pelo presidente da Assembleia Nacional.
Até agora havia o presidente do Conselho de Estado e o presidente do Conselho de Ministros, sendo o cargo ocupado pela mesma pessoa, que também podia acumular com o de primeiro secretário do Partido Comunista Cubano (PCC). Foi assim com Fidel Castro, que esteve à frente dos destinos da ilha de 1959 até 2008 (quando se afastou por motivos de doença), e de Raúl Castro, que depois de suceder ao irmão (oficialmente só a partir de 2011) ficou como presidente do Conselho de Estado e de Ministros até abril de 2018. Nessa data, passou a pasta a Miguel Díaz-Canel e à nova geração de líderes cubanos, mantendo-se contudo à frente do partido.
Estas alterações de terminologia são feitas sem modificar o sistema político de partido único, com o PCC a ser apresentado como um dos "pilares fundamentais" e garantes da "ordem política, económica e social". O PCC é "único, martiano [de José Martí, o herói da independência], fidelista [do falecido líder revolucionário Fidel Castro], marxista [de Karl Marx] e leninista [de Lenine]", de acordo com o texto, que diz que os cubanos são "guiados pelo ideário e exemplo de Martí e Fidel e as ideias de emancipação social de Marx, Engels e Lenine".
A votação surge numa altura em que o presidente norte-americano, Donald Trump, aumentou os ataques ao socialismo, apelidando-o de "ideologia triste e desacreditada".
Apesar de o projeto inicial prever um artigo que defendia que o casamento é a união entre duas pessoas, abrindo a porta aos casamentos homossexuais, esta opção foi retirada do texto final depois do debate que gerou e a oposição das igrejas católica e evangélica. O tema será aprofundado no Código de Família, prevendo-se que possa haver um referendo sobre o tema no prazo de dois anos.
O artigo 82 diz apenas que o "casamento é uma instituição social e jurídica" e "é uma das formas de organização das famílias", sendo fundada "no livre consentimento e na igualdade de direitos, obrigações e capacidade legal dos cônjuges".
A expressão #YoVotoSí (eu voto sim) espalhou-se pelas ruas de Cuba, nos autocarros, supermercados e televisão, mas também nas redes sociais como resposta ao #YoVotoNo (eu voto não). O 3G chegou aos telemóveis da ilha no final do ano passado e o presidente Díaz-Canel é muito ativo no Twitter, tendo dado ordens para os seus ministros fazerem o mesmo.
"A nossa Constituição formula os deveres e direitos dos cidadãos na base do devido respeito às pessoas. Condena todo o tipo de discriminação. Ratifica os direitos da infância e da adolescência", escreveu numa das mensagens.
Mas, segundo a AFP que confirmou uma informação do blogue de notícias independente 14ymedio, o operador único de telecomunicações do país (Etecsa) travou o envio de qualquer mensagem de texto com a hashtag #YoVotoNo. Estas não chegam aos destinatários.
As organizações de direitos humanos denunciaram ainda a detenção de vários opositores que se manifestaram contra a nova Constituição.
Mais de oito milhões de cubanos são chamados a pronunciar-se no referendo. Várias associações de defesa dos direitos humanos, como as Damas de Branco ou o Observatório Cubano de Direitos Humanos, apelam ao voto no "não". "Não confiamos na Comissão Nacional Eleitoral, nem no sistema estatístico do regime cubano, mas não renunciaremos a fazer chegar a mensagem alta e clara de que uma parte importante da cidadania está cansada de 60 anos de fracassos", indicaram.