É declamar um folheto de publicidade como se fosse escrito por Fernando Pessoa. É recitar uma bula de medicamentos como se as palavras fossem de Almada Negreiros. É ler um acórdão polémico de um juiz como se fosse uma obra de Mário Cesariny. A Poesia Cocó é isto, embora possa ser muito mais. É "uma mistura de coisas sem interesse nenhum", que se transformou num espetáculo, onde o objetivo é fazer o público rir. Se conseguir passar uma mensagem, tanto melhor. Nasceu em outubro, em Aveiro, e está pronta para pisar outros palcos.."Pegamos em textos sem qualquer tipo de valor literário e tentamos elevá-los ao mais alto nível da poesia", diz ao DN Beatriz Mano, de 25 anos. Tem boa projeção de voz, jeito de atriz. É ela, investigadora de Biologia na Universidade de Aveiro, quem dá voz aos textos compilados e trabalhados por Johnny Almeida, de 30 anos. Depois de duas edições que superaram as expectativas de ambos, preparam-se para a terceira performance, nesta quarta-feira, no Avenida Café-Concerto, em Aveiro.."É, acima de tudo, um produto de comédia. O principal objetivo é fazer que as pessoas se sintam confortáveis. Elas não estão à espera que se declame um folheto do Pingo Doce, por exemplo", afirma Johnny. São millennials - nativos digitais - e, por isso, uma boa parte do produto é retirada da internet. Estimam que 50% dos textos sejam extraídos de vídeos virais. "Há muita pesquisa feita no YouTube, muita publicidade que chega pelo correio, de programas de televisão, de apanhados." E, pelo meio, "também há poetas a sério"..O cenário é simples: uma carpete às riscas, uma sanita cheia de livros, um sofá e campainhas. Numa pequena demonstração, Beatriz toma conta do palco. Começa com o texto de um "poeta desconhecido" do YouTube: "Buenos dias, Matosinhos. Olha os aviões lá trás." Leva-nos até ao Brasil com o "Sabão crá-crá" e termina com as mais célebres (e estranhas) frases usadas para desculpar faltas ao trabalho. Quem se identifica, toca a campainha..Eles acreditam que é possível declamar gafes, manuais de instruções, anúncios de televisão, rótulos de cereais ou até tickets de parquímetro de forma a parecerem menos ridículos. "Pegamos em textos completamente desconexos, parvos, sem qualquer tipo de sentido, ou textos que ditos de outra maneira faziam sentir repugnância ou desconforto, e tentamos declamá-los de uma forma menos ligada ao texto. Ou seja, se é um texto muito mau, fazemos uma coisa muito leve", explica Beatriz..Foi o que fizeram ao prestar "uma homenagem ao grande professor [Tomás] Taveira e às pessoas que vão para a universidade e fazem de tudo para tirar 20". Johnny recorda que havia medo na plateia: "As pessoas estavam à espera que fôssemos superagressivos, mas até houve beleza na forma como foi declamado. Apesar de ser uma coisa agressiva e pornográfica, o público riu, porque se sentiu aliviado.".Também fizeram "uma homenagem às pessoas do século XIV, bastante retrógradas", para a qual usaram o texto de um vídeo de João Malheiro na Benfica TV, a falar "da homossexualidade como uma doença". Apesar de o foco ser fazer rir, Johnny diz que aproveitam para "transportar mensagens, chamar a atenção para alguns temas". É também com esse objetivo que, no terceiro espetáculo, vão "ler excertos do acórdão do juiz Neto Moura e construir uma dinâmica à volta disso". Para interagir com o público, usam campainhas, bolas antistress, buzinas de bicicletas. E também promovem batalhas poéticas..Na primeira edição tentaram criar uma narrativa - "embora estivesse pouco marcada" - sobre o dia-a-dia, abordando as rotinas, questões religiosas, políticas, entre outras. Já na segunda, procuraram focar-se nas homenagens. Foram do genérico do Dragon Ball - a lembrar os anos 90 - ao Brasil. Houve Carnaval, Mamonas Assassinas, Gabriel, o pensador, telenovelas, Cidade de Deus, Sai de Baixo.."Fenómenos paranormais" é o tema do terceiro espetáculo. "Inicialmente, quisemos fugir ao lugar-comum que é, para mim, o maior fenómeno paranormal deste país - a Maria Leal -, porque estava a ser muito batido na comunicação social. Não era boa altura. Mas como o tema morreu um pouco, vamos pegar nele", revela o criativo..A concretização de um sonho.Não sabem se o que estão a fazer é inédito. "Possivelmente há coisas do género. Na internet, há vídeos de pessoas a declamar outras pessoas." Eles levam os textos para o palco, e introduzem dinâmicas com o público. Uma ideia de Johnny Almeida, que fez formação em Novas Tecnologias da Comunicação e Cinema, e acabou a trabalhar em publicidade. Atualmente, trabalha na Covil - promotora cultural dedicada à produção, edição e promoção de projetos e eventos musicais - e coordena a revista Txi.."Era um sonho antigo. Sempre tive vontade de construir qualquer coisa com textos que em termos literários eram zero, com coisas do quotidiano. E acho que resulta muito bem este mecanismo de os tratarmos como produtos muito sublimes", diz o criativo. Identificado o mecanismo, procurou um espaço para produzir o espetáculo e tentou encontrar alguém para passar a mensagem. Acredita que nove em cada dez pessoas teriam recusado o convite. Beatriz aceitou.."No início achei superestranho e, por isso, incrível", diz a jovem investigadora da Universidade de Aveiro. Natural do Faial, nos Açores, faz teatro desde os 10 anos. É a sua grande paixão. "As artes, a comunicação com o público, conhecer pessoas e conversar sobre coisas culturalmente ricas e culturalmente pobres... É fantástico porque é cultura", sublinha..Johnny procura, complica e compõe os textos, enquanto Beatriz declama em cima do palco. Por enquanto em Aveiro - e de acesso gratuito -, mas admitem a possibilidade de levar a performance a outras cidades. Desejam andar "com manteiga nos pés, a viajar no espetro do que é sublime e do que é cocó". Sem limites. "É poesia, não no sentido de construção literária, mas de declamação. E é cocó porque os textos são cocó." O público interpreta como quer.