Notícias plantadas, mentiras, deontologia jornalística e escrutínio democrático
É óbvio que não é indiferente saber se um determinado ator com responsabilidades públicas mentiu ou não no exercício dessas responsabilidades. E é também óbvio que os critérios editoriais da comunicação social estão sujeitos a escrutínio. Sobre isto deveríamos estar todos de acordo. Onde começamos a discordar é no critério usado para decidir que declarações ou situações sob suspeita devem ser esmiuçadas e até que nível, e que notícias devemos questionar e como.
Calhou, no meio da tempestade das sms da CGD e das acusações ao Público sobre ter aceitado que lhe "plantassem" uma notícia sobre 10 mil milhões transferidos para offshores com o intuito de "desviar a atenção" da questão da CGD, que Cavaco Silva desse uma entrevista à RTP. Nesta, o ex PR apresentou de viva voz e sem corar a versão do episódio das "escutas de Belém" que consta do seu recente livro. Segundo Cavaco, tudo - as notícias saídas no Público em agosto de 2009, a um mês das legislativas, sobre alegadas vigilâncias/escutas perpetradas pelo governo socialista sobre a Presidência, e que a publicação, pelo DN, de mails internos do Público viria a provar terem decorrido de "informações" dadas pelo assessor de imprensa do PR, Fernando Lima, desde abril de 2008 - teria sido uma "inventona" do governo PS para embaraçar a Presidência.
Portanto, aquilo que ficou documentalmente provado - que Lima abordou o Público com suspeitas sobre as ditas vigilâncias em 2008 e reiterou a ideia em 2009, algo que o ex assessor, em recente livro "de memórias", assumiu finalmente, asseverando ter "recebido indicação superior para o fazer" ou seja, tê-lo feito por ordem de Cavaco - foi transformado pelo ex PR no contrário: a notícia foi plantada, mas pelo então Governo.
Temos pois um ex PR a acusar um jornal de ter "criado" uma notícia para o prejudicar. Que sucede? Nada. Nem os jornalistas que assinaram as duas notícias nem, tão-pouco, o então diretor do jornal, José Manuel Fernandes, reagiram. Aliás quis o destino que JMF tivesse sido chamado pela RTP para comentar a entrevista de Cavaco. Embaraçado, ante um Pedro Adão e Silva (o outro membro do painel) perdido de riso, balbuciou que "os jornalistas ainda não tinham contado a sua versão da história" e acrescentou que "as notícias nunca falaram de escutas". Ora esta segunda afirmação é falsa - logo na primeira notícia, e no primeiro parágrafo, o Público usou a expressão "sob escuta". E recorde-se que à época, em 2009, o Provedor do Leitor do Público analisou as notícias, sendo muito duro com o jornal, o que lhe terá valido ser apelidado de "mentiroso" pelo então diretor. O qual chegou a afiançar que o próprio Público estava a ser alvo de vigilância, subscrevendo a teoria de que o Governo andava a vigiar tudo e todos.
Mas, em 2017, confrontado em direto com a acusação de Cavaco, JMF não tem nada a dizer. Como nada disseram até hoje os autores das notícias, Luciano Alvarez e São José Almeida, a jornalista que "recolheu" junto de Lima a confirmação da acusação da vigilância, que assinou a primeira notícia e que é agora presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Se calhar não conseguem falar de tanto rir: de facto tem pilhas de graça passarem de acusados, com provas, de terem publicado uma notícia "plantada" pela Presidência contra o então governo para agora serem acusados pelo ex PR do exato contrário. Se calhar está mesmo tudo perdido de riso nas redações, o que explica que ninguém lhes peça esclarecimentos. Ou no meio das 20 mil notícias sobre se as sms entre Centeno e Domingues poderão provar que o ministro mentiu não há espaço para perguntar à jornalista que preside a um órgão de fiscalização deontológica o que tem a dizer sobre a acusação de crime deontológico que um ex PR lhe fez. Ou faltou alguém para "plantar" a pergunta.