Nostalgia de Leninegrado sem os Duran Duran

O bom cinema russo chegou à competição de Cannes com Verão, realizado por Kirill Serebrennikov, o cineasta que está preso e não veio ao festival. Uma odisseia cultural (e musical)
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Na quarta-feira (com as novas regras de horários de visionamentos de imprensa, os jornais diários estão sempre com dois dias de atraso...), a competição de Cannes foi regada com rock and roll nostálgico e underground de Leninegrado dos anos 1980. A cortesia vem de Leto/Verão, de Kirill Serebrennikov, cineasta russo em prisão domiciliária por atividades contra as subvenções do regime russo, que aqui assina uma crónica baseada em factos verdadeiros sobre a cultura pop rock de Leninegrado no começo dos eighties, narrando as aventuras e desventuras de dois projetos musicais que foram beber as suas influências aos Talking Heads, Blondie, David Bowie, Marc Bolan e Lou Reed, bem como a toda uma cena punk dos "inimigos" ideológicos do Ocidente.

Rodado num preto & branco sumptuoso, Verão está cheio de bastidores de concertos e conversas sobre famílias musicais. Segundo Mike, o ideólogo do "clube de rock" (sempre muito vigiado pelas autoridades) para a juventude da cidade, o som que o seu protegido Vicktor tem de fazer nunca pode ter a batida dos Duran Duran. A banda de Simon Le Bon era o vade retro desta geração que pegava nas guitarras como escape de liberdade de um país onde o rock era visto pelo governo como uma hipótese da afirmação da juventude soviética.

Kirill Serebrennikov conta esta odisseia cultural com desvios de mensagem política ilustrados em números musicais em que uma das personagens lembra: "Isto não aconteceu." E esses desvios podem incluir um punk a cantar num comboio Psycho Killer, dos Talking Heads em russo, ou um par romântico a interagir num elétrico com os passageiros a entoarem a melodia de A Perfect Day, de Lou Reed. Sequências delirantes capazes de deixarem em pele de galinha o mais frio dos espectadores.

Verão tem tanto de charme saudosista como de carinho legítimo por uma utopia geracional que sonhou o verão do amor com glam rock. É pena apenas ser um filme com uma certa inoperância narrativa que, às vezes, faz que os laços de afeto sobrem à míngua da luz.

Também na quarta-feira chegou Yomedinne/Dia do Julgamento Final, do egípcio Abu Bakr Shawky, uma história sobre pobreza extrema, exemplo pouco feliz de uma "simpatia" imposta pela condição humana do Terceiro Mundo. E o problema desta primeira obra é precisamente a ênfase da ligeireza e na tal simpatia das boas intenções.

Pela Quinzena dos Realizadores começou já o desfile de cinema da casa. O primeiro francês foi Les Confins du Monde, de Guillaume Nicloux, com Gaspard Ulliel e Gérard Depardieu. Uma espécie de Apocalipse Now dos pobres a partir de um caso de vingança de um soldado francês na Indochina de 1945. Sexo, violência gráfica e muitos minutos em salas de ópio. O Vietname é filmado com uma "gordura visual" que se socorre de câmaras lentas e que não dá nada ao espectador. No fim há alguma intensidade, mas fica sempre um sentimento de desilusão. Compreende-se agora que Nicloux tenha sido "despromovido" da seleção oficial (tinha estado em 2015 com Vale de Amor, também com Depardieu) para a Quinzena.

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