"Nos últimos 20 anos a delinquência juvenil diminuiu em número e gravidade"
Como caracteriza a evolução da delinquência juvenil em Portugal, em termos de grandes tendências?
A delinquência juvenil nos últimos cinco anos da década de 1990 era muito mais numerosa, grave e muito mais violenta contra as pessoas do que é agora. É algo que as ocorrências da polícia mostram claramente. Tínhamos jovens em idades muito baixas como líderes de grupos organizados com práticas muito violentas contra pessoas e com resultados muito graves. E no espaço de 20 anos a delinquência tornou--se menos grave e menos numerosa. Quando vemos as ocorrências da polícia vemos um decréscimo acentuado e depois nos últimos anos uma estabilização.
A que podemos atribuir isso?
Tem havido em Portugal um continuado decréscimo na população infantojuvenil, mas não é de modo nenhum só isso. Creio que esta evolução se deve também à entrada em vigor da lei tutelar educativa, em 2001, que é das mais avançadas a nível internacional e europeu. Mas, por outro lado, houve um decréscimo dos recursos das próprias polícias. Por isso, não sabemos como estão as cifras negras [número de crimes não denunciados]. Quando falamos com a população há alarme social, a ideia de que a delinquência dos jovens vem a crescer, mas oficialmente não temos confirmação. E no que respeita aos inquéritos de delinquência autorrevelada feitos em Portugal nos últimos anos, ao compará-los com os de outros países, os nossos valores são inferiores.
Os últimos números de medidas cautelares educativas, ou seja, as "penas" aplicadas aos jovens, relativas a 2015, dão a ver um aumento muito significativo (53,76%), face ao ano anterior, dos pedidos de relatórios e audições com vista à decisão da medida.
Há um aumento do número de relatórios sociais mas uma diminuição que é continuada no tempo e significativa da perícia sobre a personalidade, que é a perícia pedida apenas nos casos muito graves e em que à partida o tribunal considera que é previsível que pode ser aplicada uma medida de regime fechado. Ora, serem pedidas tão poucas perícias dessas num ano em que até houve um aumento dos relatórios sociais dá a sensação de que a delinquência que está a chegar aos tribunais não é tão grave que justifique a aplicação da medida de regime fechado. Mas, voltando aos relatórios sociais, há vários fatores que podem explicar esse aumento dos pedidos. Um é a reforma do mapa judiciário, que ocorreu em 2014; não sabemos qual foi o ajustamento dos pedidos e dos processos. Houve uma transição difícil do sistema, e, como os processos tutelares educativos não têm carácter de urgência a não ser em determinados casos, estes pedidos todos podem corresponder a 2015 ou a casos dos anos anteriores.
E há ainda a alteração à lei, em 2015, que faz prescindir de queixa nos casos de delitos cometidos por menores.
É outro aspeto a ter em linha de conta na análise dos números dos pedidos feitos à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e que impede, desde logo, comparações com anos anteriores no que diz respeito aos pedidos feitos. Embora também venha a ouvir que muitas ocorrências acabam logo arquivadas pelo MP em função da sua natureza, logo não pedido à DGRSP. É mais uma circunstância a necessitar de ser aprofundada para se verificar como é que vem a ser aplicada.
Há uma panóplia vasta de medidas que variam da admoestação ao internamento em regime fechado. Em que casos é que se aplica o internamento?
O internamento só se aplica nos casos em que os factos correspondam a molduras penais mais graves. No regime semiaberto terão de ser crimes contra as pessoas que tenham uma moldura máxima abstrata superior a três anos, ou dois factos classificados como crime com pena superior a três anos. Pequenos danos, pequena violência patrimonial não se enquadram numa medida de internamento. O regime fechado só pode ser aplicado a jovens maiores de 14 que tenham cometido crimes contra as pessoas com penas de prisão superiores a cinco anos ou dois crimes contra pessoas com pena superior a três anos.
Existe um tempo médio para a tramitação dos processos?
Varia. Já apanhei jovens em que havia um desfasamento de três anos em relação à aplicação da medida. Um deles tinha praticado os factos aos 14 e a medida estava a ser aplicada com ele a entrar nos 18. O sistema acaba por ter muitos mais velhos como ele em vez de ter mais novos. E, quanto mais tarde a intervenção, menor o sucesso, até porque entretanto a probabilidade de reincidir é grande.
Há um texto seu de 2015 em que diz que os centros educativos não estão lotados, pelo contrário, mas que há cento e tal jovens com sentenças de internamento que não deram entrada e não se sabe nada deles. Conseguiu entretanto perceber o que se passou?
Não. Falei com procuradores e com magistrados, apresentei esses dados num painel com a procuradora Joana Marques Vidal, que ficou surpreendida, e falei com uma pessoa da DGRSP que me disse que eles atribuíam os lugares e depois os jovens não eram encontrados. Ora, admito isso até um certo número, residual. Mas eram mais de cem jovens nessa situação. E esses dados já não estão no site da Direção-Geral. O número foi diminuindo e com a entrada de Celso Manata para diretor-geral toda aquela área foi reformulada na estatística. Pode dar-se o caso de ser um erro estatístico, mas nesse caso era grave. E nunca consegui perceber as justificações que me foram dadas informalmente.
Estavam, de acordo com esses dados, quase tantos fora como dentro. Mas se estivessem todos dentro não haveria lugar; houve um centro, o de Santa Clara, encerrado em 2014.
Sim, e uma das questões que coloco é essa: a oferta condicionou a procura? Houve no verão de 2014 um ofício do então vice-diretor da DGRSP, Licínio Lima, aos tribunais, a dizer "não há vagas". É uma coisa que não passa pela cabeça, inadmissível; como se se quisesse condicionar as decisões dos tribunais. Tenciono desenvolver um projeto de investigação nesta área em que essa é uma das questões. Porque é preciso perceber isto: eram casos graves, os mais graves do sistema, porque tinham medida de internamento, que lhes sucedeu? Temos uma lei muito boa mas é preciso que os recursos estejam à altura, e tenho dúvidas de que isso esteja a acontecer. Seria muito importante que a lei tivesse como órgão gestor um serviço autónomo e não integrado nos Serviços Prisionais, porque acaba por ser contraditório relativamente àquilo que são os seus princípios orientadores.