"Nos EUA temos uma Constituição do século XVIII que é extremamente anti-democrática"
Esteve em Lisboa para participar na conferência "Constitucionalismo no século XXI". Quais são os maiores desafios nesta área?
Vindo dos EUA, eu diria que o maior problema para os tribunais constitucionais é manter um sentido de direito diferente do de política. Há nos EUA um sentimento crescente de que o Supremo Tribunal se tornou mais um ator político, de que está alinhado com os partidos que se divide de acordo com linhas políticas. É muito difícil para as pessoas compreender a diferença entre a lei e a política. E se não há diferença, porque é que o tribunal pode decidir sobre questões que podiam ser decididas politicamente? Penso que este é um problema geral, em vários países. Os tribunais constitucionais têm sempre de se justificar politicamente. E quando decidem casos contenciosos, vão estar sob ataque - o lado perdedor vai dizer que foi apenas política. Quanto mais polarizada a sociedade, mais difícil é o trabalho do tribunal. E também mais necessário, devido à sua responsabilidade de manter a sociedade unida no respeito pelos seus valores mais profundos. Mas à medida que as divisões se acentuam, essa tarefa torna-se mais difícil. Tal atingiu um extremo mais acentuado nos EUA do que em muitos países europeus. Mas em alguns países da Europa também tem havido um ataque contra os tribunais, que têm sido politizados. Basta olhar para a Polónia ou Hungria. São países em que a divisão entre política e lei falhou. Portanto, a questão estrutural para os tribunais constitucionais, seja onde for, é perceberem que esta é a sua tarefa - e é uma responsabilidade existencial. Em segundo lugar têm de perceber que não podem assumir que as coisas vão resolver-se por si - os consensos estão a desaparecer. Este é o principal desafio. Mas há mais. A Internet está num boom, o ciberespaço é um problema e a privacidade. Mas o verdadeiro desafio para os tribunais é manter as pessoas conscientes de quais são as suas responsabilidades.
Olhando para o Supremo Tribunal dos EUA, mudou bastante com o presidente Trump, que ao nomear três juízes o fez virar à direita. E tal terá influência nas próximas décadas...
É uma crise para nós. De momento temos um tribunal alinhado com os partidos políticos. E já há repercussões políticas - os republicanos, nas últimas eleições, não tiveram resultados tão bons como estavam à espera por causa da decisão do Supremo de reverter Roe vs Wade. Houve um custo político.
A decisão de reverter o acesso ao aborto que datava de 1973 foi histórica, mas com um Supremo tão conservador, outros direitos como o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o acesso à contraceção podem estar em risco?
Temos de fazer a distinção entre o que é politicamente possível - e um tribunal está limitado politicamente, diga-se o que se disser - e o que é jurisprudencialmente consistente. Os mesmos argumentos que justificaram Roe vs Wade estão em causa quando falamos no casamento entre pessoas do mesmo sexo, no acesso à contraceção. Estes casos estão vulneráveis, claro. Como é que se pode reverter Roe e dizer que não tem nada a ver com a posição do tribunal sobre o casamento gay? E alguns dos juízes já disseram que deviam reexaminar todos os casos deste tipo, até aos casos originais. Até ao caso Grizwold vs Connecticut, sobre acesso a contracetivos. Roe vs Wade foi uma decisão mal fundamentada, tal como Grizwold. Alguns dos juízes que estiveram com a maioria no caso Dobbs - que revogou Wade - disseram que não tinha nada a ver com os casos anteriores, mas só dizem isso porque é politicamente correto. Agora, até onde é que o Supremo pode ir? Bom, temos muitas pessoas ideologicamente empenhadas. É difícil dizer. Neste momento, um dos contra-movimentos nos EUA é de pessoas ou grupos que afirmam que fornecer serviços a homossexuais vai contra a sua religião. Garantem que a sua liberdade religiosa fica em causa se tiverem, por exemplo, de fazer um bolo de casamento para homossexuais. Mas a lei diz: "olhe, é pasteleiro, tem de fazer bolos para qualquer cliente. Não pode dizer que a sua religião o impede de fazer bolos para negros ou homossexuais". Este é um argumento que já ouvimos em tribunal, mas que este afastou com base em motivos processuais. Mas acredito que agora os juízes venham a aceitar uma certa formulação do argumento. Esta é uma linha de ataque forte por parte da direita: dizer que a liberdade religiosa está em causa nestes casos culturais. É um Supremo muito conservador, mas é também um Supremo que está a tentar reescrever as leis que garantem a separação da Igreja do Estado. Até onde chegará, ninguém sabe.
Uma das decisões que vai ser tomada em breve tem a ver com o perdão das dívidas dos estudantes - uma proposta do presidente Joe Biden para cancelar 400 mil milhões em dívidas. Neste caso, um tribunal politicamente motivado, com uma maioria conservadora, pode travar uma decisão da Administração?
Depende como encaramos o caso. Uma forma de o fazer é afirmar que os juízes têm procurado constranger o crescimento do Estado administrativo - por isso temos todos esses estatutos que criam agências estaduais que são responsáveis por vastas áreas como o ambiente, a economia, a educação. Desde Franklin Roosevelt que o Estado federal tem crescido e estas agências costumam agir sob um mandato estatutário muito amplo. Mas quando um presidente é eleito, estabelece uma série de políticas que enquadram as agências numa direção ou noutra. Mas este tribunal decidiu uma coisa chamada "doutrina da questão principal" que obriga as agências federais, sempre que tomem uma decisão sobre uma questão que tenha "consequências políticas e económicas excecionais", a ter de seguir uma instrução específica do Congresso. Logo, se o presidente quer cancelar 400 mil milhões em dívidas dos estudantes, não é uma decisão que ele pode tomar sozinho, precisa de autorização do Congresso. E é preciso lembrar que o Congresso neste momento está num impasse. É uma maneira de dizer ao presidente que lhe estão a tentar tirar os poderes. Com uma condição - se conseguir fazer com que o Congresso aprove [a proposta], pode fazer o que quiser. Mas eles sabem que não vai acontecer. E a pergunta seguinte é: esta doutrina foi inventada para a Administração Biden? Já faziam o mesmo com a Administração Trump? Há quem argumente que as coisas estão a piorar. Aconteceu com algumas das iniciativas de Biden, por exemplo ligadas às alterações climáticas, à imigração e agora pode acontecer com as dívidas dos estudantes. É uma medida popular, muita gente acha que se justifica. Mas o tribunal não vai ter nada disso em conta. Vai decidir de acordo com uma teoria muito abstrata de que deve ser o Congresso a decidir. E quando dizem aos juízes que este não vai decidir a resposta é que isso não é problema deles e que vão queixar-se aos Pais Fundadores [risos].
Voltou a discutir-se agora a hipótese de mudar o número de juízes do Supremo Tribunal dos EUA. Hoje são nove mas nem sempre foi assim. Podia ser uma solução?
Há várias propostas para reformar o tribunal, que na maior parte passam por reduzir o seu poder. Na minha opinião pessoal, não sou contra. Mas não vejo que o Congresso o vá fazer. São propostas dos democratas, vinda geralmente da ala esquerda do partido. E se os democratas tivessem votos suficientes para aprovar essas propostas, também tinham votos para fazer o que querem. Mas mesmo que os democratas conseguissem votos suficientes, os americanos têm sentimentos muito fortes em relação ao tribunal. Não se querem meter com ele, tem uma grande importância simbólica.
Os americanos veem o Supremo Tribunal quase como algo sagrado?
Sim, exatamente. Por isso acho que estamos muito longe de aprovar legislação que mude substancialmente o lugar do tribunal.
Em Portugal há um grande debate em torno do uso dos metadados em decisões judiciais. Qual o balanço certo entre proteção das liberdades individuais e garantias de segurança nacional que os tribunais devem procurar?
Bom, não sou a melhor pessoa para falar disto porque não tenho os conhecimentos técnicos, mas posso dizer uma coisa: fico muitas vezes chocado pela natureza paradoxal destes esforços. E há duas questões aqui, uma do lado americano e uma do lado europeu. Do lado americano, a instituição que melhor conhece o meu comportamento é a Amazon [risos]. Não é o departamento de Defesa, é a Amazon, está constantemente a monitorizar-me. Para o bem e para o mal. Por isso, sim, a ideia de que a vigilância vai acabar, é impossível. Vivemos num Estado em que todos esses dados estão a ser processados. A Amazon quer vender coisas, eu quero comprar, qual é o problema? Portanto temos de ser claros sobre o que nos preocupa. Se estamos preocupados com a vigilância, já estamos muito para além disso. Não vai voltar atrás. O que nos preocupa mesmo é o uso abusivo desses dados por parte do governo. Esse é o problema. Temos de confiar no governo e criar instituições em que confiemos, colocando-lhes limites. Por isso não sei como se encontra um equilíbrio, quando na verdade estamos constantemente sob vigilância. Este é o lado americano. Do lado europeu, sempre que vou a um site, tenho de preencher um quadradinho a dizer se aceito que usem os meus dados. E eu aceito, toda a gente aceita. Há a sensação de que muitos destes regulamentos legais não passam de formalismos. Pensamos que estamos a dar o nosso consentimento, mas não estamos, estamos apenas a despachar um formalismo para chegarmos à informação que queremos. Não me parece que esta seja uma resposta política séria: colocar as coisas em termos de escolha individual. Não é uma escolha individual. Estamos na Internet a toda a hora e a Internet recolhe dados a toda a hora. Temos de confiar. Confiar no governo. Eu não me preocupo com isso, não me importa que saibam o que comi ao pequeno-almoço ou que livro comprei. Então quem é que está preocupado? Os criminosos. Porque têm algo a esconder. Mas queremos mesmo mobilizar-nos para proteger os direitos dos criminosos? Quando as coisas se tornam políticas é que é preocupante. Porque aí já não é o que é que eu comi ao pequeno-almoço, trata-se de encontrar como é que podemos influenciar alguém que comeu tal coisa ao pequeno-almoço a votar de determinada forma. Por isso não é uma questão de vigilância, é uma questão de confiança no governo.
A Constituição dos Estados Unidos data de 1789, com algumas emendas desde então. As instituições pensadas pelos Pais Fundadores da América ainda são o garante da democracia americana?
Não, de todo. E há dois anos tivemos uma experiência de quase morte dessas instituições. Por isso penso que estamos muito mais vulneráveis do que pensávamos. Olhe para o Congresso, não consegue aprovar nada, está disfuncional. O Supremo Tribunal está alinhado com um partido minoritário, ou mesmo com uma minoria dentro de um partido minoritário. E dentro de dois anos o presidente pode voltar a ser Donald Trump. Temos uma Constituição do século XVIII que é extremamente anti-democrática. Afinal Trump foi eleito sem nunca ter ganho a maioria dos votos. Teve menos sete milhões que Biden nas últimas eleições mas teve menos três milhões do que Hillary Clinton quando foi eleito. Temos um défice democrático e instituições arcaicas. No Senado, por exemplo, os senadores da Califórnia representam 40 milhões de pessoas e têm o mesmo poder que os senadores do Wyoming que representam 500 mil. Porque é que isto havia de funcionar? Mas funcionou relativamente bem enquanto houve um consenso geral no país. Enquanto houve dois grandes partidos políticos que não eram assim tão diferentes. Mas agora o país está dividido ao meio e as nossas instituições não estão preparadas para lidar com este tipo de divisões. Por alguma razão nenhum país do mundo escreve a sua Constituição baseada na americana. Não sei quais os próximos passos para uma reforma democrática, mas tem havido um esforço para tornar as eleições presidenciais mais democráticas. Não há motivo hoje para o presidente não ser quem venceu o voto popular. Acho que reformar o Senado vai ser ainda mais difícil, mas tem de ser feito. Só talvez não enquanto nós estivermos vivos. Talvez só depois de uma grande crise. Nessa altura vejo a possibilidade de surgirem algumas respostas políticas criativas. Talvez passemos a ter mais governo regional. Eu vivo no Connecticut, Nova Inglaterra, e acredito que podemos passar a ter vários estados a trabalhar em conjunto para assumir responsabilidades que agora são de nível nacional.
Em Portugal, como no resto da Europa, muita da imagem que temos da justiça americana é a que nos chega através de filmes e séries de advogados e polícias. Quão próxima da realidade é?
Eu diria que os filmes policiais estão longe da realidade. Além disso, o policiamento é um dos grande problemas na América hoje em dia. No que diz respeito à Casa Branca, se vir a série West Wing não me parece que a realidade seja muito parecida. Quem nos dera que fosse. Mas a realidade deve ser mais parecida com a de qualquer escritório: pessoas a competir umas com as outras, a tentarem tramar-se e a fazer bullying umas às outras. Acredito que seja um ambiente difícil, como qualquer outra grande empresa.
E as séries de advogados?
A maior parte dos processos criminais nunca chegam a tribunal. E quando chegam, os argumentos orais não costumam ser muito bons. Não me parece que a realidade sirva para um bom argumento. Os problemas nos tribunais americanos, na política americana, são estruturais. Eu escrevi um livro sobre filmes [Finding Ourselves at the Movies, algo como "Encontrarmo-nos a nós próprios no Cinema", em português] e estes perpetuam a crença nas instituições americanas. Há pouco dizia que a Constituição é sagrada para os americanos, é verdade. Isso acontece também porque a vemos representada dessa forma nos filmes. Aprendemos sobre política com a indústria do entretenimento. Para o bem e para o mal. E o West Wing era bastante bom [risos].
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