Nos 40 anos da Revolução Sandinista, Ortega acusado de ser o novo Somoza
"Ortega e Somoza são a mesma coisa", é uma das palavras de ordem dos protestos que já duram há mais de um ano na Nicarágua. Quarenta anos depois da vitória da Revolução Sandinista a 19 de julho de 1979, Daniel Ortega, o ex-guerrilheiro que derrubou a ditadura de quatro décadas dos Somoza e chegou a presidente, é acusado de repetir os crimes dos seus antigos inimigos.
"Ortega aperfeiçoou o controlo do Estado, levando-o a uns níveis que acho que a ditadura de Somoza nunca atingiu", disse numa entrevista à EFE um dos comandantes da revolução de 1979, Luis Arrión, agora dissidente. O presidente, que diz continuar a defender os princípios da revolução sandinista, alega que foi alvo de um falhado "golpe de Estado".
Ortega, hoje com 73 anos, juntou-se no final dos anos 1960 à clandestina Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que tinha nascido em 1961 inspirada pela Revolução Cubana e pela Teologia de Libertação. Tinha sido batizada em homenagem a Augusto César Sandino (líder da resistência contra a ocupação norte-americana da Nicarágua nos anos 1930).
Os Somoza - o poder começou no pai, Anastasio Somoza García, passando depois para os filhos Luis e Anastasio Somoza Debayle - controlavam as decisões políticas, económicas, militares, judiciais e sociais do país, contando com o apoio da Guarda Nacional que reprimia com violência qualquer oposição. A família controlava ainda grande parte da riqueza - fazia parte do 1% de latifundiários que eram donos de 65% das terras da Nicarágua, recebendo milhões de dólares das empresas estrangeiras que atuavam no país.
Era madrugada de 19 de julho de 1979 quando Anastasio Somoza Debayle renunciou ao cargo e fugiu de avião do aeroporto Las Mercedes de Managua - acabaria por ser assassinado durante o exílio, no Paraguai, em 1980.
Os militares que o tinham apoiado abandonaram os uniformes prontos para sair também do país, abrindo caminho aos festejos sandinistas e ao governo liderado pela Junta de Reconstrução Nacional, da qual Ortega fazia parte - e que na prática passou a liderar, a partir de 1981, sendo oficialmente eleito presidente nas eleições de 1984.
A vitória foi um revés para o domínio dos EUA na região - os Somoza tinham consolidado o seu poder com o apoio dos norte-americanos, preocupados em plena Guerra Fria conter os movimentos de esquerda na América Latina.
Os sandinistas empreenderam uma série de reformas políticas, sociais e económicas, destinadas a garantir maior justiça social, sendo acusados pelos EUA de apoiarem movimentos revolucionários marxistas na região.
O então presidente norte-americano Ronald Reagan, que considerou os sandinistas como "uma ameaça extraordinária para a segurança e a política externa dos EUA", autorizou então a CIA a financiar, armar e treinar um grupo de rebeldes - alguns pertencentes à antiga guarda dos Somoza - numa tentativa de derrubar a antiga guerrilha. Ficaram conhecidos como os "contra".
A guerra civil e a crise económica acabariam por pressionar os sandinistas e, nas eleições de 1990, acordadas após a assinatura dos acordos de paz, Ortega perdeu para a União Nacional Opositora, liderada por Violeta Chamorro. A viúva do jornalista opositor Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, diretor do jornal La Prensa, tinha feito parte da Junta de Reconstrução Nacional como membro independente, durante o primeiro ano da vitória da revolução.
Depois de mais de 15 anos na oposição, Ortega voltaria ao poder também através das urnas, em 2007. Desde então, ganhou mais duas vezes, em 2011 e em 2016, esta última após ser aprovada uma emenda constitucional que permite a reeleição ilimitada. A sua mulher, Rosario Murillo, que apelida de "eternamente leal", foi eleita vice-presidente, com acusações de benefícios para a família.
O descontentamento começou a 16 de abril de 2018, com a aprovação na Assembleia Nacional dominada pelos sandistas de uma reforma da segurança social, para fazer face a um défice superior a 75 milhões de dólares e garantir a sustentabilidade financeira do Instituto Nacional de Segurança Social.
A idade de reforma mantinha-se nos 60 anos (apesar de o Fundo Monetário Internacional ter defendido que subisse para 65), mas decretava-se uma diminuição de 5% nas pensões e aumentava-se os pagamentos - as empresas de 19% para 22,5% e os trabalhadores de 6,25% para 7%.
A 18 de abril, dois dias depois de ter sido aprovada a reforma (criticada pelo setor empresarial), os manifestantes saíram à rua de várias cidades do país. Os protestos acabaram em confrontos entre manifestantes e forças governamentais, com o registo das três primeiras vítimas mortais logo nesse dia - o balanço já vai em mais de 325 mortos.
Mas o que começou como um protesto contra a reforma, que Ortega deixou cair a 22 de abril, transformou-se numa crítica aberta ao regime que muitos consideram autocrático, mas que continua a defender os sucessos da revolução.
"Se a atual repressão dos protestos contra o seu governo de 11 anos fosse um filme, diríamos que era um remake da campanha brutal que Somoza travou contra os seus adversários políticos na década de 1970", escreveu no ano passado o editorialista Charles Lane, no The Washington Post, num artigo de opinião intitulado "Ortega está a tornar-se o tipo de autocrata que outrora desprezou".
Alvo de sanções internacionais e cada vez mais isolado e sem o apoio económico do regime venezuelano, Ortega lançou-se num diálogo com a oposição, que culminou na aprovação, a 8 de junho, de uma lei de amnistia que perdoa os crimes relacionados com os protestos - desde os manifestantes, a membros das forças de segurança ou milícias pró-governamentais, tendo sido estabelecido a data de 18 de junho como prazo para a libertação de todos.
Desde fevereiro, o governo já terá libertado mais de 600 presos políticos. Mais de 80 continuam, contudo, detidos, segundo a oposição reunida na Aliança Cívica pela Justiça e Democracia, que denuncia ainda mais de 62 mil exilados. No caso dos manifestantes, a sua libertação implica a promessa de não participarem em mais protestos contra o governo de Ortega - o que os críticos consideram pôr em causa o direito constitucional de liberdade de reunião.
Não é a única polémica, com críticas de vários lados, incluindo da alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Muitos apelidam-na de "autoamnistia", destinada a proteger o regime e a oposição diz que irá causar impunidade ao impedir as investigações às violações dos direitos humanos.
"A crise foi provocada pelos golpistas da oposição, só o governo do comandante Daniel Ortega beneficiou o povo", disse à agência AFP um dos seus apoiantes, num dos eventos de comemoração dos 40 anos da Revolução. "Ortega é um grande líder", disse outro apoiante, alegando que os protestos foram organizados "pela direita há anos".