Nordestern. O renascimento de um género made in Brazil

Os "<em>western </em>à brasileira" nasceram há um século. Consolidaram-se com<em> O Cangaceiro</em>, premiado em Cannes em 1953. E, desde <em>Bacurau</em>, de 2019, voltaram em força, via <em>streaming</em>, gerando a "Roliúde Nordestina".
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Ubaldo, um bancário da zona urbana de São Paulo sem memórias de infância, descobre que tem uma herança do pai no sertão do Ceará. Ao chegar, tornam-no líder de uma quadrilha de assaltantes e apresentam-lhe as duas irmãs, uma é membro de uma fraternidade que cultua a memória do falecido pai e a outra é a única mulher num grupo de ladrões de bancos. Eis Cangaço Novo, série que está no top 10 das mais vistas da Amazon Prime Video no Brasil e em mais 49 países e ilustra o boom de um género chamado de nordestern.

Como é fácil de presumir, o nome, cunhado pelo crítico e escritor Salvyano Cavalcanti de Paiva, junta "nordeste", a região brasileira onde decorre a ação da maioria das produções, e os "western" americanos. E fala de cangaço, fenómeno tipicamente nordestino, caracterizado por ataques de grupos de criminosos que roubavam tudo por onde passavam no fim do século XIX e início do XX. Nos últimos anos, entretanto, houve um ressurgimento do crime, chamado de "novo cangaço", com assaltos a bancos e manutenção de reféns em cidades de médio porte: segundo levantamento do portal UOL, 7,6 milhões de pessoas de 20 localidades foram afetadas no Brasil de 2016 a 2022.

O género cinematográfico que expõe o cangaço foi fundado, segundo o site da Cinemateca Brasileira, na década de 20 do século passado, com títulos como Filho Sem Mãe (1925), Sangue de Irmão (1927) e Lampião, a fera do Nordeste (1930), dedicado ao maior de todos os cangaceiros, e a Maria Bonita, a sua lendária parceira. Mas consolidou-se com O Cangaceiro, obra de Lima Barreto de 1953 premiada em Cannes nas categorias "aventura" e "banda sonora" que levou quase um milhão de espectadores brasileiros às salas de cinema à época. E voltou em força a partir de Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, filme também premiado no festival francês, em 2019.

Desde então, cineastas, argumentistas, atores e técnicos nordestinos assistem ao nascimento - ou renascimento - de uma indústria própria com a adesão ao género de plataformas de streaming, como a brasileira Globoplay ou a Amazon Prime Video, a casa de Cangaço Novo. A cidade de cerca de 5000 habitantes de Cabaceiras, na Paraíba, autodenomina-se até "a Roliúde Nordestina", numa alusão, obviamente, à Hollywood californiana, por receber as gravações de Cangaço Novo, de Guerreiros do Sol, do Globoplay, ou da série Maria Bonita, do Star+, já depois de ter servido de cenário a O Auto da Compadecida, de Guel Arraes (2000), entre outras produções.

Atenta ao fenómeno, a Cinemateca Brasileira abriu a programação de 2023 com uma mostra de curtas-metragens, filmes de média duração, documentários, materiais antigos e contemporâneos num total de 17 filmes sobre o género. "Se o western é o cinema americano por excelência, como o pesquisador francês Jean-Louis Rieupeyrout intitulou o seu clássico ensaio de sete décadas atrás, o nordestern pode ser considerado um género brasileiro por excelência", escreveu Marcelo Miranda, no jornal Folha de S. Paulo.

Segundo o jornalista, a ascensão de cangaceiros modernos narrada no bem-sucedido Cangaço Novo tem como fonte O Cangaceiro, o citado filme que em 1953 "inventou um universo audiovisual" para contar história da rivalidade entre um líder de bando, Galdino, interpretado por Milton Ribeiro, e um dos integrantes do grupo, Teodoro, vivido por Alberto Ruschel. A origem do conflito é a professora Olívia, papel de Marisa Prado, sequestrada primeiro por um e depois por outro.

Bacurau, que ganhou, ex-aequo, o prémio do júri em Cannes, é, em 2019, outro marco. "Com Bacurau, desde o início pensámos em fazer, com cactos e cavalos, um western clássico", disse Kleber Mendonça, coautor do filme ao lado de Juliano Meirelles, no portal UOL. "Mas é uma história de violência brasileira em que um grupo de pessoas que vive tranquilamente e em paz é atacada, o que gera um sentimento de injustiça e, a dado momento, uma reação". "Estão no filme", prossegue o cineasta, "as tensões históricas entre as regiões Sul/Sudeste e Nordeste, o olhar que vem de cima pra baixo e que não deveria fazer parte da vida em sociedade, mas faz".

Alice Carvalho, cuja interpretação de uma das irmãs de Ubaldo na série Cangaço Novo vem merecendo aplausos, reconhece os "antepassados". "Gosto de falar que não inventámos a roda", disse, ao portal G1. "Tivemos um destaque muito importante entre o público, nos media, com uma série genuinamente nordestina e sertaneja mas existe um movimento que vem acontecendo há muito tempo antes de nós, temos vindo de um levante muito importante, que fortalece o mercado cinematográfico como um todo".

"O sertão de Cangaço Novo, ambientado no interior do Ceará, na fictícia Cratará, poderia ser cenário de western aos moldes de Sergio Leone e Tarantino. A força dos diálogos, atuações, cenas de ações lembrou-me o impacto causado pelo Cidade de Deus (2002)", escreveu o crítico cultural Fernando Masini no blogue A Cruz e a Empada, num texto sob o título "o sertão pop e violento de Cangaço Novo, uma série made in Brazil".

Ao jornal Folha de S. Paulo, os argumentistas Mariana Bardan e Eduardo Melo, contam que a série usa "o espetáculo do terror". "Como os assaltos acontecem à luz do dia e podem durar até uma hora, realmente a violência e o terror são parte do método, que exige força bruta, se não retratássemos esse impacto, ficaríamos desalinhados com o que acontece, a série tem um tom acima, que faz parte do género de ação, de western e de nordestern", assinala Melo. "Ainda que seja entretenimento e não um documentário ou um tratado sobre a realidade, utilizamo-nos dela para dramatizar mais as coisas dentro da ficção", completa Bardan.

O Cangaceiro
Ano:
1953
Realizador: Lima Barreto
Formato: longa metragem
Sinopse: Inspirado no maior de todos os cangaceiros, Lampião, conta a história de Galdino, que, com o seu grupo de criminosos, saqueia cidades e faz reféns, como a professora Olívia, por quem o líder do grupo e o seu braço-direito, Teodoro, se apaixonam.
Onde ver: Amazon

Bacurau

Ano: 2019
Realizadores: Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Formato: longa metragem
Sinopse: Num futuro próximo, os habitantes da cidade de Bacurau, no oeste de Pernambuco, apercebem-se da chegada de estrangeiros que desejam exterminar toda a população e reagem
Onde ver: Filmin

Cangaço Novo
Ano
: 2023
Realizadores: Fábio Mendonça, Aly Muritiba
Formato: série
Sinopse: Ubaldo, um bancário de São Paulo, sabe que tem uma herança e duas irmãs à sua espera no interior do Ceará. Chegado à cidade, é chamado a cumprir o seu destino como o novo líder supremo de um gangue de cangaceiros
Onde ver: Prime Video

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