Norah Jones regressa com açúcar e afetos

Deu a volta ao mundo da música e sentiu saudades do jazz que a projetou. Day Breaks vai ser um disco residente no inverno
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Faça-se o teste: basta deixar correr os primeiros momentos da bateria suavizada de Brian Blade, do contrabaixo rigoroso de John Patitucci, de um piano apenas aflorado, tudo isto na entrada de Burn. De uma forma digna de Pavlov, será difícil não começar de imediato a salivar pela voz de Norah Jones... Que pena ela ter deixado de se dedicar a este jazz linear, epidérmico, mágico! É então que se dá o milagre da ressurreição de alguém que, no limite, tínhamos deixado lá atrás, em Come away with Me (2002), alguém que seguiu os seus impulsos musicais em múltiplas direções, escapando a qualquer regime de clausura mas, em simultâneo, deixando por aprofundar uma fantástica primeira impressão. A vitória já estaria decidida, logo ao primeiro de uma dúzia de temas que compõem o álbum Day Breaks, com nove originais e três versões cirurgicamente pescadas em patrimónios alheios, mas ainda temos direito a bónus, quando aparece o saxofone iluminado de Wayne Shorter, que há de regressar em mais três ocasiões, sempre à conversa (aqui e ali ao despique, vamos lá...) com o piano e a cantoria de Miss Jones. Temos festa, está decidido.

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Torna-se fundamental perceber isto: mesmo que Day Breaks seja o herdeiro natural do disco de estreia de Norah, uma vez que os quatro discos intercalares navegaram fora da área protegida do jazz, a cantora, pianista, compositora, letrista e produtora está longe de ser a mesma pessoa de quem nos despedimos, temporariamente, há quase uma dezena e meia de anos, aguardando com a paciência possível o seu regresso a casa. Senão vejamos: além da discografia em nome próprio, integrou o grupo The Little Willies, conotado com a country alternativa, gravando dois discos; fez parceria com Billy Joe Armstrong, vocalista dos post--punk Green Day para gravar Foreverly, homenagem aos Everly Brothers; formou, com Sasha Dobson e Catherine Popper o grupo Puss n Boots (em que toca guitarra e violino), que também já gravou e publicou (No Fools, No Fun). Não chega para ilustrar a assiduidade laboral de Norah? Pois não, se pensarmos que ela colaborou com Ray Charles, Cyndi Lauper, Anoushka Shankar (que, por acaso, é sua irmã...), Willie Nelson, Charlie Hunter Quartet, Jools Holland, Dirty Dozen Brass Band, Jesse Harrison, OutKast, Ryan Adams, Foo Fighters, Tim Ries (no Rolling Stones Project, em que cantou Wild Horses), Bonnie Raitt, Jerry Lee Lewis, M. Ward, Herbie Hancock, Wyclef Jean, Belle & Sebastian, Charlie Haden, Danger Mouse, Kathleen Edwards, Vinicius Cantuária, Lindsay Buckingham, Wilco, Emmylou Harris e Keith Richards. Mesmo sem uma lista exaustiva, bem pode dizer-se que não há categoria estética que não a tenha visto entrar porta dentro, mesmo acabando por não se demorar. E o espantoso mora no facto de que, em todos os casos, manteve a integridade e, se quisermos, a graciosidade. Percebe-se, por outro lado, que precisava de divagar e, sobretudo, de experimentar, antes de regressar ao jazz.

A fuga, o fim, o segredo e os filhos

Recentemente, a cantora confessou em entrevista que tinha sentido a necessidade de "fugir da fama, demasiado repentina para ser suportável". Sem querer perder aquilo que levara anos a conquistar ("eu já tinha tocado e cantado todos os clássicos de jazz em todos os restaurantes que dispunham de um piano..."), optou por diversificar. E por ir enfrentando aquilo que a vida lhe deu E não foi pouco: primeiro, a reconciliação e a aproximação com o pai, o grão-mestre do sitar indiano, Ravi Shankar, que acabaria por morrer em 2012. Depois, a sua estreia como atriz, em My Blueberry Nights - O Sabor do Amor, filme de Kai War Wong que chegou a ser nomeado para a Palma de Ouro de Cannes. Jones contracenou com Natalie Portman, Rachel Weisz, Jude Law e David Strathaim, e acabou por dar de caras com um argumento premonitório: no filme, ela passa por uma rutura amorosa bastante complicada, algo que viria a acontecer--lhe na vida real, poucos meses depois da estreia do filme, quando terminou a relação com o baixista Lee Alexander. Mais recentemente, Norah tem conseguido manter secreto o nome do seu namorado - algo só possível porque teima em proteger, de forma leonina, a sua privacidade - que é também o pai dos seus dois filhos, nascidos em fevereiro de 2014 e em julho deste ano.

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Se calhar, é tudo isto que desagua em Day Breaks. Passadas cinco canções, já há três com entrada direta para qualquer antologia dos nossos dias: além de Burn, também It"s a Wonderful Time for Love, momento de respiração para piano, contrabaixo, bateria e voz, e And then There Was You, com uma exemplar utilização de um naipe de cordas, ensaiam tangentes ao sublime. A seguir, virão as versões, todas das melhores proveniências. Por ordem de entrada em cena, Don"t Be Denied, que vem do fundo dos tempos de Neil Young (do álbum Time Fades Away, de 1973), Peace, de Horace Silver, que - fruto daquilo que vivemos - acaba por transformar-se no hino do disco, e ainda Fleurette Africaine, de Duke Ellington, algo que poderia valer apenas uma sessão "de demonstração" mas, graças aos músicos envolvidos (ainda Shorter, Patitucci, Blade e Jones), acaba por se transformar num delicioso exercício de estilo.

Para resumir: em cada esquina, um amigo. O mesmo é dizer que, a cada passo (e são 12), se descobre uma boa razão para celebrar condignamente o regresso em beleza de Norah Jones, mais carregada do que nunca de açúcares (naturais, não dos propulsores da diabetes) e de afetos. Já agora: é perfeitamente compreensível que Miss Jones continue a torcer o nariz à palavra jazz, tão eclética e tão carregada de responsabilidade. Vai dar ao mesmo, desde que continue a praticá-lo tão bem e como tão poucos conseguem.

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