Norah Jones não canta mas come muita torta de mirtilo

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O realizador Wong Kar-Wai nunca tinha encontrado a cantora Norah Jones, só a conhecia de lhe ouvir as músicas. Mas queria-a para principal intérprete do seu novo filme, My Blueberry Nights, o primeiro que fez em língua inglesa e que abriu ontem a competição do Festival de Cannes . O autor de Disponível para Amar explicou porquê na conferência de imprensa, numa sala onde não cabia nem um alfinete: "Foi a voz da Norah que me atraiu. É uma voz muito ci nematográfica, como se fosse um instrumento. É como se saíssem histórias dela."


E, como Kar-Wai queria a voz mas não queria a cantora, Norah Jones fez a sua estreia no cinema sem entoar uma só nota ao longo das quase duas horas deste filme todo rodado nos EUA. Pouco importa, porque ao contrário de muitos outros colegas seus, que estão mortinhos para fazer cinema e se exibirem na tela, Norah Jones não quer, nunca quis, jamais pensou em ser actriz.


"Não tinha planeado fazer estreia nenhuma no cinema", disse na con ferência de imprensa. "Fiquei muito admirada quando o Wong falou comigo. Antes de aceitar, fui ver Disponível para Amar. Achei que era um filme formidável e a seguir decidi aceitar o convite. Tive uma confiança cega nele. Não sou actriz e não teria feito um filme com qualquer outro realizador que não fosse o Wong Kar-Wai. E não estou a planear fazer mais papel nenhum", insistiu Norah Jones.


Em My Blueberry Nights, Jones interpreta Lizzie, uma rapariga que sofre um desgosto de amor em Nova Iorque e que encontra Jeremy (Jude Law), um inglês dono de um café que fica aberto pelas horas mortas. Jeremy dá compreensão, simpatia e torta de mirtilo com gelado a Lizzie, que precisa de grandes quantidades de tudo isto - sobretudo da sobremesa, que devora sem nunca se saciar. (Poucos realizadores conseguem, como Kar-Wai, tornar sensual um plano de gelado a derreter sobre uma fatia de torta.) Apesar de, a cada pedaço de torta de mirtilo com gelado que Jeremy lhe serve, se sentir mais e mais atraída por ele, Lizzie decide que precisa de distância da cidade onde lhe partiram o coração. E parte país fora, trabalhando em restaurantes e bares para comprar um carro e, quem sabe, fazer a viagem de volta nele.


Wong Kar-Wai escreveu My Blueberry Nights com o americano Law rence Block, autor muito ligado ao policial, e para o filmar, mudou não só de língua como também de continente, país e cultura. Só que o filme, densamente atmosférico e sensorial como é marca do realizador, parece uma extensão americana de Disponível para Amar, com mais personagens, a mancha multicolorida dos néones das cidades dos EUA substituindo a de Hong Kong, e os diálogos muito explicativos de Block enredando-se nas vozes off das personagens. A sensação deixada por My Blueberry Nights é de reciclagem temática, formal, visual e emocional, de déjà vu. Embora um déjà vu sumptuosamente executado, com recurso nomeadamente ao ecrã panorâmico.


Kar-Wai usa Norah Jones como testemunha atenta e participante passiva em dois dos três capítulos em que My Blueberry Nights se divide, mais do que como catalisadora dos enredos, porque isso seria pedir dela o que não está apetrechada para dar. Mas resulta, porque apesar de não cantar uma nota, Jones é bonita, singela, fotogénica. E come torta de mirtilo com gelado como uma pessoa normal, e não como uma cantora que se quer dar ares de estrela de cinema instantânea.

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