Na fronteira do século XIX com o século XX, a Noruega afirmava uma sólida posição global no comércio que nutria a procura crescente dos setores alimentar e da medicina. Do Norte da Europa à bacia do Mediterrâneo, de África à Índia, o mundo clamava por gelo de qualidade. A Noruega tinha-o, e abundante, nos fiordes e lagos. Dos portos do país nórdico saíam anualmente, por volta de 1890, mais de um milhão de toneladas de gelo, perto de metade para abastecer o mercado do Reino Unido. Na época vitoriana, um verão quente inglês, antecedido de um inverno frio norueguês, significava lucros consideráveis para os comerciantes de gelo..Precedendo a viagem de dois mil quilómetros desde as geleiras nórdicas, impunha-se um afã de serração do gelo, transporte até à costa, depois marítimo, subida do rio Tamisa em barcaças e acondicionamento em poços com 12 metros de profundidade. Um caminho que também se fazia com prejuízo. Matéria-prima volúvel, o gelo apresentava até 20% de perda de água no decorrer do transporte..Carlo Gatti, suíço, nascido no ano de 1817, radicado em Londres, afirmou-se desde 1857 como um dos principais importadores do gelo norueguês. Chegado à capital inglesa em 1847, Gatti associou-se ao conterrâneo Battista Bolla num modesto negócio de restauração, que apostou em duas novidades na época: o chocolate quente e os sorvetes. Gatti e Bolla também sabiam que uma boa publicidade enrobustecia as vendas. Na montra da cafetaria, operava continuamente uma máquina de fazer chocolate (mereceu mostra na Grande Exposição de 1851) para deleite dos clientes. Chegado o verão, o negócio dos sorvetes, sobremesas geladas à base de frutas, atraía um número crescente de fregueses..Havia, contudo, que contar com a disponibilidade de gelo, e este escasseava. Gatti olhou para a Noruega como uma fonte de bom gelo geograficamente mais próxima do que os Estados Unidos, país também exportador. Uma primeira remessa de 400 toneladas de gelo chegou a Londres para ser acomodada no armazém (hoje o London Canal Museum) que o empresário suíço mandara erigir na capital inglesa..Carlo Gatti fez-se importador do precioso gelo, democratizador do consumo de sorvetes e distribuidor da matéria-prima que permitia a refrigeração. Uma rede de carroças levava o gelo a comerciantes de produtos lácteos, peixe, carne, entre outros, assim como aos lares mais abastados..Aí, o gelo era conservado nas denominadas "cavernas de sorvete". Nas ruas, Gatti expandia o seu negócio de sorvetes à boleia dos penny-lick, copos de vidro espesso que acolhiam o doce. O cliente não usava colher, antes lambia o sorvete diretamente na taça. Atitude que mereceu o repúdio de uma figura que, tal como Carlo Gatti, escreveu capítulos na democratização das sobremesas geladas..Agnes Bertha Marshall, nascida em 1855, empresária inglesa, autora de livros de culinária e inventora, foi também uma ativa defensora da higiene alimentar. No caso específico do penny-lick, Agnes via-lhe os perigos associados: as taças não eram lavadas após utilização, tornando-as focos de propagação de doenças como a tuberculose. Em 1898, Londres proibiu a utilização dos penny-lick. Na época, Bertha encontrara há uma década o recipiente sucessor para receber o sorvete, o cone confecionado a partir de amêndoa e apresentado em 1888 numa receita inscrita no livro Mrs. A. B. Marshall"s Book of Cookery..Agnes, cuja obra escrita inclui quatro volumes, entre eles The Book of Ices (1885), alcançou em poucas décadas o estatuto de "Rainha do Gelo" da Inglaterra Vitoriana com os seus trabalhos sobre sorvetes e sobremesas geladas, com elaborações como o Sorvete de pepino, limão, açúcar, pistáchio e baunilha; Sorvete de pato com foie gras e pimenta-de-caiena ou a famosa "Rosseline Bombe", doce de neve aromatizado com água de rosas e cerejas em compota..Proveniente de uma família modesta do leste de Londres, Bertha casou-se aos 22 anos com Alfred William Marshall e iniciou uma parceria empresarial perene até ao ano da sua morte, em 1905. Numa época em que o receituário incluía, por exemplo, biscoitos de anchova, sopa de tartaruga ou creme de coelho e o elenco de um jantar abarcava dezenas de pratos, preparados por uma multidão de cozinheiras, Agnes franqueou as portas da alta cozinha à mulher inglesa comum. A par com o marido, fundou um império assente numa escola de formação de cozinheiras, a National Training School of Cookery, uma empresa de produção de artefactos para a cozinha. Paralelamente, os Marshall desenvolveram uma inovadora indústria alimentar de fermentos em pó e gelatinas. Uns e outros, utensílios de cozinha e novos ingredientes, eram amplamente utilizados nas receitas que Agnes reproduzia nas páginas dos seus livros. O negócio crescia e a empresária lançou-se, em 1886, na edição da sua própria revista, The Table..Agnes fez mais. Em 1885, apresentou a patente de uma sorveteira que congelava sobremesas em poucos minutos. O método era simples: um recipiente em metal aconchegava um creme de frutas. Girava, por seu turno, manualmente dentro de um recetáculo de madeira onde fora introduzido gelo e sal. Simples e eficaz..Breve, o mundo de Carlo Gatti e Agnes Bertha extinguir-se-ia. O advento da refrigeração mecânica pôs fim à demanda de fontes naturais de gelo. Em 1920, a procura de gelo norueguês caíra para 5% daquela que se verificava dez anos antes..Remontam aos séculos XVI e XVII as primeiras referências a casas de gelo em Inglaterra com o objetivo de conservar alimentos. Contudo, os métodos que então se impunham continuavam a ser, entre outros, a salga, a defumação e desidratação. O desenvolvimento do comércio de gelo natural ocorreu, primeiro, do outro lado do Atlântico, na América do Norte..Contribuíam para isso, a indústria cervejeira e de embalamento de carne. Cenário onde se impôs Frederic Tudor (1783 - 1864), o "rei do Gelo" de Boston. Milionário, enriqueceu com a extração de gelo dos lagos da Nova Inglaterra, importado para as Caraíbas, Europa, Índia e Hong Kong. Tudor construiu uma rede de casas de gelo nos trópicos e desenvolveu os métodos de isolamento: aparas de madeira, palha, arroz.