"No tempo das raves não havia miúdas tão giras": Lisboa tem um Dance Festival
Zeca Afonso não será propriamente o primeiro nome (nem porventura o último) a surgir à cabeça, quando se fala de música de dança, mas até ele se ouviu no Lisboa Dance Festival, que terminou ontem. Pouco passava das sete da tarde de sexta-feira, quando os críticos musicais Davide Pinheiro e Vítor Belanciano subiram à cabina instalada na receção do hostel The Dorm, uma das pistas de dança improváveis do festival, para dar arranque a segunda edição deste festival. Soou A Formiga no Carreiro e Lisboa dançou.
Entre sexta e sábado, foram cerca de 10 mil as pessoas que se deslocaram até LX Factory, em Alcântara, para assistirem aos espetáculos de nomes tão diferentes como Hercules & Love Affair, Marcel Dettmann, Mount Kimbie, Branko, Moullinex, Sam the Kid, DJ Glue ou Batida na segunda edição deste festival.
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Há já muito que a música de dança se tornou num dos mais fervilhantes laboratórios de sonoridades e tendências e é precisamente isso que o Lisboa Dance Festival quer demonstrar, convidando o público para uma alucinante volta de 360 graus, à velocidade de muitas batidas por minuto, por um cada vez mais alargado universo, aqui condensado num único quarteirão.
Com um cartaz tão abrangente, quase contraditório em termos conceito, num ápice se muda de hip-hop clássico do rapper português Holly Wood para a Synthpop da canadiana Jessy Lanza, uma das boas surpresas da primeira noite, que apenas sofreu com a hora vespertina da sua atuação, quando muita gente ainda estava a chegar, a jantar ou simplesmente a esperar na fila da bilheteira - sem dúvida um dos aspetos a melhorar em edições futuras.
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Quando a DJ americana Tokimonsta sobe ao palco, com os seus olhos rasgados e enorme sorriso, já são muitos mais os que a esperam e abanam os corpos com a sua mistura de a mistura de eletrónica com momentos de hip-hop. E são mais ainda quando o produtor e DJ alemão Marcel Dettman começa o set que irá terminar a primeira noite de festival, daí a um par de horas.
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Todos estes nomes atuaram sexta, na Fábrica XL, o palco principal (ou talvez antes, a maior pista de dança) do festival, que este ano se distribuiu também por locais mais improváveis como o já citado The Dorm ou a Livraria Ler Devagar, onde por vezes as filas à porta se prolongavam por várias dezenas de metros, especialmente quando atuavam nomes grandes como Sam the Kid, Batida ou Riot.
Na rua, o público, em cada vez maior número à medida que noite avançava, continuava a circular e se a fila era grande, a solução era seguir para outro local, até porque o percurso é circular e, num ou noutro momento, todos os caminho vão dar ao Carlsberg Room, no espaço Zoot. Aqui, o músico e produtor português Luís Clara Gomes, mais conhecido por Moullinex, convidava o público a participar numa ultramaratona musical de oito horas para celebrar os 10 anos da editora Discotexas, com a presença de muitos convidados e um espetáculo de vídeo que, a avaliar pela quantidade de telemóveis no ar ao longo de de toda a noite, terá decorado muito murais de facebook e páginas de instagram. O mesmo local, receberia, no dia seguinte, outra vez de aniversário, desta vez da editora Enchufada, que teve como anfitrião o ex-Buraka Som Sistema Branko.
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Mais uma volta, mais uma corrida, agora até à Ler Devagar, para dançar ao som do DJ Glue, o ex-Da Weasel que transformou a livraria num elegante clube, cheio de gente a dançar languidamente ao som de Rihanna e Destiny"s Child.
A emancipação
"No tempo das raves não havia miúdas tão giras", admira-se um "festivaleiro mais veterano", como depois se apresenta, a um amigo que por ali anda. De facto, há muito que a música de dança já se emancipou do gueto das raves e dos ambientes decadentes dos afterhours. É house e é trance, mas também é hip-hop, electro, kuduro ou funaná. Tornou-se não só conhecida, como respeitada, já não serve só para abanar o corpo, é também ouvida. Em suma, tornou-se mainstream, até porque "a maior parte destes nomes podia estar presente em qualquer festival de música", como comentava um grupo de amigos, ao olhar para o cartaz com o horário das atuações, exposto à entrada da Fábrica XL, enquanto bebia uma cerveja - por alguma razão não era permitido entrar ou sair com bebidas dos recintos.
Entretanto, lá fora, o vai e vem de público continua, noite fora, num corrupio de gente de todas as cores e feitios. "Mudem de rumo, mudem de rumo, já lá vem outro carreiro", ouvia-se ainda há algumas horas, no início do festival, quando estas ruas ainda estavam quase desertas. José Afonso não estaria com certeza a pensar nestes ambientes, quando, em 1973, escreveu o tema A Formiga no Carreiro, mas não deixa de ser engraçado que até ele, hoje, tenha lugar num festival de música de dança.
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