No Porto, provavelmente um dos concertos do ano
Foi simplesmente arrasador! No final da Quinta Sinfonia de Mahler, a "casa", isto é, a Sala Suggia, quase veio abaixo. A performance da Sinfónica do Porto mereceu-o; mas, mais ainda, a interpretação de Michael Sanderling, a conceção (ou o Grundkonzept, como dizem os alemães) que ele demonstrou ter da sinfonia eram disso merecedoras. E quando isso sucede numa obra com as características da Quinta, com o seu muito nítido percurso per aspera ad astra (de que a Quinta de Beethoven foi um dos exemplos inaugurais), ela adquire um momentum irresistível, tal como sucedeu no domingo, na Casa da Música.
Retrospetivamente, durante os entusiásticos aplausos, lembrámo-nos do primeiro pormenor que nos surpreendera nessa Quinta: a forma como estava bem timbrado o primeiro acorde (ff) do tutti orquestral, logo após o solo introdutório de trompete (sem desmerecer o acerto total desse sempre temível solo). Foi, assim, como um "sinal" do que estava para acontecer. Sanderling levou os 70 minutos mais ou menos habituais na sua leitura, mas o segredo esteve... onde ele sempre deve residir: no arco. Isto é, a construção musical coerente ao nível dramatúrgico de cada andamento, sendo que cada um dos (aqui) cinco andamentos toma o seu lugar e peso relativos num arco global também ele dramaturgicamente coerente. Conseguir isso é um difícil "ovo de Colombo" e Michael Sanderling conseguiu-o com clareza, convicção e eloquência desarmantes, transmitindo no final a sensação de uma grande jornada percorrida e fruída em conjunto.
Foi especialmente avassaladora a experiência de escutar e perceber como moldou o Scherzo - andamento que é para nós a pedra de toque de toda a sinfonia -, a lição de plasticidade do tempo (rubato, sim, mas sobretudo consumada ciência agógica!) que ele deu no Adagietto, ou a energia motórica lenta e sabiamente doseada que ele conferiu ao Finale.
A OSP-CdM não esteve impecável, mas exibiu ainda assim um nível muito elevado - se não, como teria a sinfonia podido causar tamanha impressão?
Contudo, esse nível exibira-o já antes, na Sinfonia n.º 64, de Haydn, embora com ferramentas muito diferentes, já que 130 anos separam as duas obras. Também essa capacidade de adaptação, ou "comutação" rápida entre estilos/princípios de execução tão diferentes é sempre um sinal de saúde de uma orquestra (de novo, não foi impecável, e contudo...).
E já aí nos interpelara fortemente a conceção de Sanderling dessa sinfonia sumamente original: a n.º 64 poderia ser a prova última de como o silêncio é música e, por outro lado, ela ilustra de forma absolutamente cristalina todos os princípios que, 80 anos depois, Hanslick consagraria como definindo a chamada música absoluta. E depois tudo é dito daquela forma lapidar, certeira e incisiva que é quase endémica à personalidade musical desse genial criador. E também isso transpareceu da leitura de Sanderling, da forma como moldou fraseios, deixou respirar, deixou ressoar, como definiu articulações, como geriu contrastes, como "tensionou" os silêncios. Uma lição de direção do estilo clássico, em resumo, antecedendo a revelação mahleriana.
Venha por muitos anos, Michael Sanderling!