No planeta do super-homem

Verão, corpo. É no Verão que os corpos mais se expõem aos outros e no Verão que o ginásio mais se vê. O Verão, para os culturistas, é época de competições, culminando a obsessão pelo corpo, levada ao extremo. Há quem queira ser Adónis de um dia para o outro. E há quem passe os dias a moldar o corpo, detalhe a detalhe. Como um artesão do músculo. Como João Caneco. <br />
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João Caneco, personal trainer. Nascido e criado, músculo por músculo, na Chamusca. Já foi miúdo, teve corpo ténue, desprotegido. Já foi como os outros. Não é que seja diferente. É, tão-só, um expoente físico, testando metodicamente os limites dos seus limites, estudando-se, redefinindo-se. É a sua própria criação. Um exemplar ribatejano, a milhas da versão Da Vinci do homem vitruviano, um campeão body fitness, campeão de culturismo, que vê no corpo uma obra de arte, como se fosse uma escultura sempre em construção, sendo ele o seu escultor. Ou talvez o construtor. Ou, talvez, o instrutor. 
Exactamente como aconselharia qualquer culturista que se preze, na forja para competição ou apenas para consumo próprio, o melhor é ir por partes. E, se começarmos pela unidade de topo, tudo o que fica entre a testa e a nuca, algures entre as regiões frontal e occipital, é preciso que os neurónios – tantos quantos houver no activo – transportem lentamente novas informações, do que é periférico ao sistema nervoso central, em harmonia córtex e funcionalidade hipotálamo, entre o circundante e a espinal medula, entre esta e a massa encefálica, que sabemos onde está. Tudo se deve conjugar numa vontade férrea, para modelar o que separa a mente da planta dos pés. E, como diria João Caneco, para citar um velho ditado, filho adoptivo do universo do músculo: «No pain, no gain!»

«No pain, no gain»
No pain, no gain, mister Caneco. Pain, de dor. Gain, de ganho. Seja o que for, desde que a frase se traduza desde aquele momento, em plena competição com outros corpos hiperbolizados, oleados, em cueca, em certos casos dental, demonstrando horas incontáveis de ginásio, uma dieta de meses, uma fomeca inexcedível, whisky e outros vasodilatadores, em confluência para a vitória final, se a rotina correr como correram os dias longos, alguns de agonia, todos de pain, numa casa da Chamusca. Simplista, se acharmos que a competição é tudo. A longo curso, diz Caneco, é só gain.
Os nossos próprios limites permitem-nos duvidar, personal Caneco. E, mesmo correndo o risco de se evitar uma bicicleta estática a troco de feijões e colesterol, mesmo trocando a estática pela estética, as calorias pela minoria, nem todos querem ser Caneco. Porém, nada retira a Caneco o corpo que o Caneco esculpiu. Nesse sentido, é tudo o que quis. E não há músculo que o possa contrariar.
Por muitas dores que se sinta, o ganho não chega só porque se quer, quando se quer. Não é coisa que se obtenha dias antes da abertura oficial da época balnear. E, se o objectivo for o de ostentar um corpo supra-Adónis, ou mesmo supra-Caneco, é preciso adoptar um duríssimo regime, de exercício, de alimentação, de suplementação – assunto delicado –, até de vida, em busca de um metabolismo que sustente o crescimento imparável dos músculos no seu invólucro, um teste aos limites do expoente «V».       

Não é para todos
É por isto, mas não só, que um corpo escultural, no sentido body building do termo, não é para todos. Para começar porque nem todos têm o mesmo sentido estético, nem todos prescindem de umas boas doses de portugalidade, que vão bem com quase toda a comida, calorias regadas com vinho tinto, servindo-se auxiliares de digestão destilados, logo a seguir à ingestão das mais diversas variantes do açúcar. Há quem veja nesta engorda metafísica, e física, uma forma de desporto. Tal como João Caneco entende o culturismo. Aliás, fisioculturismo. Sendo assim, trata-se de uma espécie de arte desportiva. Na maior parte do tempo, um desporto solitário, sem descontarmos a imagem de si próprios no espelho, onde, ano após ano, dia após dia, se notam as transformações.

A fórmula fisioculturista
Palavra a João Caneco, no caso de dúvidas existirem quanto à fórmula culturista, perdão, fisioculturista, de superação: «Qual é a imagem que é importante nós passarmos às pessoas? É a seguinte: o culturismo é uma forma de estar na vida. E as pessoas adquirem essa forma.» La Palisse, já que os culturistas, mesmo que amadores, como são esmagadora maioria em Portugal, vivem para a forma. Quanto mais torneados os músculos, mais estes se associam imediatamente a imagens de suor escorrendo em bica, manga cava encharcada, esforço em estado bruto, máquinas e homens, sentido lato, nos mais diversos exercícios de pain, num ginásio perto de si.
Mister Caneco, porém, entra no assunto pela porta dos fundos. Directo para as regras. Directo para a caminha, a horas, depois de uma refeição com tudo o que deve ser administrado, em doses comprimidas da energia certa, no cumprimento rigoroso da deontologia da boa prática culturista. Como amante do seu corpo, João Caneco fala pelos culturistas quando diz: «Ninguém gosta mais do meu corpo do que eu, já diziam os gregos.» Sendo assim, não convém transformá-lo numa espécie de laboratório de físico-química, como acontece em tantos desportos. Como, garante João Caneco, «não acontece no culturismo em geral».
É claro que isto pressupõe excepções, que não se compadecem com qualquer coisa de saudável. Os excessos, ainda que de exercícios, também têm muitas contra-indicações, sobretudo quando se procura algo que já deixou limites para trás. Como em tantos desportos, e neste talvez mais, «é importante ter as ideais oito horas de sono», esclarece. Não é por nada, «mas a partir da segunda hora de sono é quando se liberta a produção de hormona natural do corpo». Se for um sono tranquilo, uma espécie de sono são em corpo são, há pelo menos seis horas de fluxo hormonal. E isso é muito bom, garante Caneco. A máxima é unissexo. E, sendo assim, nada melhor do que acordar da mesma forma que se tinha deitado, tomando depois um duche, fazendo a barba – o que às vezes também é unissexo –, tomando um pequeno-almoço bem suplementado, preparando corpo e alma para o ginásio que há-de vir, se não houver contratempos ou afazeres profissionais, claramente uma sobreposição quando às vezes se prepara para competir com nomenclaturas físicas de nível internacional, profissionais do culturismo.  

Suplementação, fármacos e doping
«Um atleta, para chegar a um certo e determinado ponto, tem de combinar uma série de factores, incluindo a alimentação e a suplementação.» Alto. Antes de chegar aos treinos propriamente ditos e às extensões musculares – neste caso específico, os ossos do ofício –, Caneco deteve-se para apaziguar a desconfiança generalizada que paira sobre a suplementação. É verdade que os culturistas investem centenas e centenas, que rapidamente descambam para os milhares de euros, nas «poções» adequadas a cada peça do motor que é o organismo. Alto, portanto. «Muita gente confunde a suplementação com os fármacos. Quando uma pessoa me pergunta: “Ó João, o que é que eu hei-de fazer?” Como instrutor, personal trainer, vá lá, eu posso prescrever determinada suplementação. Mas são produtos naturais, a nível multivitamínico.» Não convém esquecer que os atletas de culturismo queimam muitas proteínas com uma carga de treino imensa. Há que suplementar as perdas.
Outro assunto, muito diferente, refere João Caneco, é o doping. E, nesta matéria, Caneco tem uma posição de força: «Acabou de ser adoptada a nova lei para regulamentar o uso das chamadas substâncias dopantes. Acho que são excelentes notícias.» Neste específico, garante Caneco, o culturismo está bem e recomenda-se. E, já agora, aproveita para recomendar que se analise mais outros desportos de alta-competição, «nos quais os atletas são tratados como príncipes e muitas vezes protegidos», acrescenta. Pano para mangas.
Se o culturismo tem esse fantasma sempre à ilharga, talvez porque a imagem pública que prevalece é a dos atletas no pleno da competição, quando o seu corpo é apresentado no expoente máximo da vasodilatação, oleadíssimo, mas inversamente em estado débil, pedindo socorro e boa pontuação, a gritar por nutrientes. «Havia de ver alguns atletas uns dias depois da competição.» Quando os pedidos calóricos foram já satisfeitos e o corpo reassumiu a sua responsabilidade de engordar. É nesta espécie de «defeso» que se mede a fibra de um verdadeiro atleta. Não convém abusar das tréguas. São elas inimigas do culturista.         

Diário de bordo
Também não é necessário esconder que o culturista é por natureza egocêntrico, tem vaidade nos resultados obtidos na sua anatomia e uma fixação nos resultados que quer obter. Quer mais. Quer bicípites e tricípites cada vez mais afastados de um peitoril altivo, tonificado e firme, quer alargar as T-shirts que revestem as suas cavidades pélvicas, as torácicas e as abdominais, quer quadriláteros que não envergonhem, quer passear orgulhosamente na praia os triangulares supracostais e os adutores, os 650 músculos do seu corpo, dos deltóides, lá em cima, aos peroneus, cá em baixo. Se for um culturista prudente, mesmo que na qualidade de mero utente balnear, tanto melhor. Estará oleado com o factor apropriado.  
Vaidades à parte, nem todos os culturistas, aliás, fisioculturistas, querem ser governadores do grande estado da Califórnia, EUA. Porém, o sonho-protótipo Arnold Schwarzenegger faz parte do imaginário idealista desta enorme colectividade, incluindo todos quantos não deram uma entrevista à CNN logo a seguir às oito horas de sono ou não tiveram oportunidade de pôr os músculos ao serviço da máquina de Hollywood. Seja como for, na pequena localidade da Chamusca, João Caneco faz por isso. Todos os dias faz por ser um Caneco maior. E, nesse sentido, melhor. Há o Caneco quotidiano, o Caneco em fase de pré-competição e o Caneco de competição, que em Portugal, curiosamente, também é estival, florescendo na Primavera/Verão.
Caneco tem 27 anos. E há mais de uma década que guarda um diário, como um diário de bordo, que um dia destes terá de ser informatizado, sobre todos os aspectos do seu corpo, da sua rotina, das horas de sono, que exercícios optou por fazer para moldar este ou aquele músculo, que suplementos tomou e em que quantidade. Os multivitamínicos são os melhores amigos dos culturistas. «Para constituir massa muscular precisamos de proteína.» E se depois de um treino exigente alguém perguntar a este personal trainer se pode repor proteínas na companhia de um ou dois bifes, não será Caneco a discordar: «Desde que não sejam de peru.» Nada contra os perus, mas também a sua não será a proteína ideal, adverte o instrutor. «É por isso que a maior parte dos culturistas preferem soro de leite, de valor biológico muito forte, em estado puro. O corpo vai reagir melhor e construir-se muito mais rapidamente. Cada desporto com a sua necessidade. O nosso objectivo é ganhar volume.» Se for o caso de preparar uma competição, então o objectivo é adquirir o máximo de massa muscular, não descurando a profundidade, a densidade, a simetria e, claro, as poses obrigatórias e a vertente artístico-coreográfica. Tudo isto na apoteose das emoções, na ansiedade do seu momento, no cúmulo de longos dias de treino e de regime intenso, no pleno estado de vasodilatação, com auxílio apenas de pequenos vasotruques. Caneco, que já coleccionou títulos de número um em body fitness e de campeão nacional de culturismo, sabe perfeitamente quanto é difícil andar em forma, quando há máquinas que não funcionam. 
Como se não bastasse os músculos, defende com unhas e dentes o culturismo como desporto e o culturismo português como modalidade que requer mais atenção e mais apoios «das entidades competentes». O sector mais musculado da nação precisa, tal como os seus músculos, de crescer. E da «suplementação» orçamental para o ajudar a crescer. Até porque o instrutor, que em noites que já lá vão exerceu a profissão de segurança, afiança que o culturismo é antes de mais um corte radical com tudo o que prejudica o corpo, mesmo que a antítese disto seja um supracorpo com hábitos alimentares correctos, analisado ao centímetro pelo seu portador. Mas, para isto, é preciso ter muita força. Não é dessa. É da outra, acima dos dorsais. É na mentalidade, diz Caneco, que a sociedade menos musculada tem de mudar. Será talvez uma questão geracional. Ou, pura e simplesmente, uma questão de gosto. Não é preciso ser um Schwarzenegger ou um Caneco, Mister Universo ou campeão nacional. É preciso, primeiro, perceber isto: «Quando nós falamos de culturismo, falamos de imagem. É uma coisa plástica. Nós não precisamos de ter força. Só precisamos de ter aparência.» Tal como faria um governador. Ou, como diria Caneco, «no pain, no gain».

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