No passado ninguém consegue habitar

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Em 20 de janeiro de 1945, quando a II Guerra Mundial se encontrava no seu sangrento ocaso, Franklin Delano Roosevelt tomou posse da presidência dos EUA pela quarta e derradeira vez. Na sua breve alocução radiodifundida para todos os norte-americanos, Roosevelt fez o balanço do que entendia ser a maior lição dos trágicos acontecimentos contemporâneos da crise económica e da catástrofe bélica: as nações teriam de compreender que a paz e o bem-estar não podem ser perseguidos isoladamente, mas sim solidariamente. E concluía, com palavras destinadas a serem gravadas em granito: "Aprendemos a ser cidadãos do mundo, membros da comunidade humana" (We have learned to be citizens of the world, members of the human community). Em 1945, os EUA estavam no auge do seu poderio. Os seus exércitos, os mais numerosos e bem equipados de sempre, venciam em todas as frentes. Eram donos exclusivos da bomba atómica, que seria revelada ao mundo em Agosto desse ano com a destruição de Hiroxima e Nagasáqui. A sua economia produzia 50% da riqueza mundial. Mas, e mais importante, os EUA estavam prestes a erguer o edifício da Pax Americana, em cujos escombros ainda hoje nos movemos: das Nações Unidas ao sistema económico de Bretton Woods, os EUA propunham uma liderança participada. Aquilo que Salazar designou, certeiramente, como "hegemonia plebiscitada". O contraste entre este passado de grandeza concreta e a visão do mundo proposta por Trump e seus associados não podia ser maior. O atual presidente dos EUA e colaboradores fundamentais como Rex Tillerson, defendem um mundo onde cada Estado deve privilegiar exclusivamente o seu interesse próprio, negando a existência de ameaças, e por isso também de interesses comuns, como as alterações climáticas. Um mundo onde não existem aliados mas apenas competidores, numa geometria variável de alinhamentos táticos ditada pelo jogo de egoísmos. Em nome do regresso à grandeza, Trump está a libertar as forças do conflito e da desagregação, que, segundo Roosevelt, foram a causa da II Guerra Mundial.

O carácter histriónico do populismo e nativismo de Trump não nos deve fazer esquecer a devastação que os seus congéneres europeus, nacionalistas e chauvinistas, estão a causar no Velho Continente. O sonambulismo político que invadiu a Alemanha é um triste exemplo da fragilidade e impotência dos partidos convencionais para salvaguardarem a viabilidade do projeto europeu. Há escassos dias, na conferência de inverno da CSU - partido bávaro, geminado com a CDU de Merkel - realizada no milenar mosteiro beneditino de Seeon, o convidado de honra foi o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, bem conhecido pelo seu populismo racista e total desprezo pelos valores constitucionais da separação de poderes e direitos fundamentais. Com esse gesto grosseiro e hostil, Horst Seehofer, líder da CSU e primeiro-ministro bávaro, tornou ainda mais difícil o longo processo negocial para tentar recompor a coligação da CDU/CSU com o SPD de Martin Schulz. Se isto se passa na Alemanha, imaginemos o que ocorre em países como a Polónia, a República Checa, a Áustria, para além da Hungria, onde os populistas já controlam o Estado e a produção de políticas públicas. A social-democracia e a democracia-cristã, que durante décadas lideraram a construção europeia, parecem esgotadas, sem propostas de futuro, e prontas a transigir com aqueles que têm como programa brincar com o fogo, glosando perigosamente as causas que levaram ao caos de onde partimos em 1945.

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