No Michigan os esquecidos sonham com um futuro de grandeza

Em 2016, o candidato Donald Trump falou ao coração e aos bolsos da classe trabalhadora, daqueles que sofreram com o desemprego ou que ficaram impossibilitados de ter acesso aos cuidados de saúde. Em resultado, o milionário arrebatou este estado tradicionalmente democrata. Se a economia continuar de vento em popa, a base fiel de apoiantes pode ser suficiente para renovar a vitória republicana
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A embalagem de cartão com o frigorífico enorme toca no pavimento, a centímetros do monte de neve, e não há a tempo a perder. Bill - só assim, o apelido é peso morto - estranha a pergunta. Está a fazer uma entrega na baixa de Detroit. "Se as coisas continuarem a melhorar, pode contar com o meu voto outra vez", diz de Donald Trump este homem de 31 anos, cara redonda e pálida, enquanto os dois colegas negros, em cima da camioneta, reagem com ruidosa e humorada desaprovação. No momento seguinte já estão com os olhos na embalagem: as temperaturas negativas e o trabalho por concluir não permitem muito mais conversa.

Bill não se dera ao trabalho de ir votar em 2012. Vive em Warren, a terceira maior cidade do Michigan, no condado de Macomb, que teve um papel chave na vitória de Donald Trump no chamado estado dos grandes lagos.

Pensilvânia, Ohio, Michigan, Wisconsin, Iowa. De leste para oeste, estes cinco estados do norte dos EUA, mais a Florida, foram fundamentais na vitória de Trump nas eleições de novembro de 2016. Mudaram da cor azul dos democratas para o vermelho dos republicanos e contribuíram com 99 votos (em 306) para o colégio eleitoral que elege o presidente norte-americano.

O Michigan faz parte da cintura da ferrugem (rust belt), uma região nos Estados Unidos que se estende até ao estado de Nova Iorque e que foi atingida nas últimas décadas do século XX pelo encerramento de indústrias e pelo desemprego. A indústria automóvel, ou da mobilidade, como agora se diz, continua ter importância central na economia do estado. É responsável por 119 mil postos de trabalho nas fábricas e, tão ou mais importante, sucedem-se os anúncios de investimento ou de abertura de instalações em investigação e desenvolvimento.

A ligação da indústria ao saber e à pesquisa é outro ponto importante: seis universidades têm centros dedicados às engenharias relacionadas com os automóveis. A engenharia e a arquitetura são as áreas profissionais com maior crescimento de emprego, 33%, números referentes ao período 2011-2016. A indústria aeroespacial e de defesa também emprega mais de cem mil pessoas e tem grande peso, mas é o setor da saúde que mais emprega (acima de 330 mil).

Como nota o governante (executive) do condado de Oakland, L. Brooks Patterson, o Michigan é um estado com "altos níveis de trabalhadores sindicalizados", por norma votantes no partido democrata. A última vez que o estado votara republicano nas presidenciais foi em 1988, quando ajudou a eleger George H. Bush. Oakland foi um dos oito condados - em 83 - que deu a vitória a Hillary Clinton. Contas feitas, Macomb, a norte de Detroit, fez a diferença a favor de Donald Trump.

"Não tenho uma resposta simples", declara o governante do condado de Macomb, Mark Hackel, sobre o comportamento dos concidadãos. "O condado é chamado de bellwether [que vota no vencedor] nas eleições presidenciais. Aconteceu com Ronald Reagan, por exemplo. É um condado de maioria democrata, mas tem muitos eleitores independentes." No segundo mandato do novo cargo de governante, que desempenha na cidadezinha de Mount Clemens, Hackel prossegue: "Essas eleições aconteceram numa altura em que as pessoas estavam à procura de um candidato diferente. Não sei se pensavam que Donald Trump era a pessoa que iria defender os seus valores, tendo em conta a sua natureza desafiadora. O que sei é que um dos candidatos representava mais as instituições políticas, e o outro tem outra mentalidade, e não estava por dentro da política. Creio que foi a intolerância à política em geral. E os eleitores independentes marcaram posição ao dizerem que queriam uma mudança. "Podemos não concordar com o seu estilo nem com a maneira como fala, mas queremos mudanças em Washington". Foi isto que os eleitores de Macomb quiseram", explica o antigo xerife.

"É um estado que tem sido democrata há décadas e isso não muda só numa eleição. Os democratas fizeram alguns erros. Um deles foi ter dado o estado por adquirido. E veja-se o que aconteceu. Trump passou aqui muito tempo e conseguiu transmitir as suas ideias", comenta por sua vez Patterson, experiente político republicano à frente do condado vizinho, Oakland, o segundo mais populoso do Michigan.

"Muito simples", começa por dizer Jodie Brown, de 52 anos, que alinha com Patterson neste ponto. "Donald Trump fez uma dura campanha aqui. Eu e o meu marido acompanhámos algumas ações no Michigan e posso dizer que encheu todos os locais", garante a empresária. Crê que assim também aconteceu nos outros estados que viraram em favor do milionário. "Pessoas de todas as raças, cores e credos ligaram-se a Trump. A sua mensagem sobre emprego e sobre a segurança das fronteiras inspirou muitos eleitores", diz esta moradora de Westland, uma cidade de 80 mil habitantes conhecida por um festival na lama, situada no condado de Wayne, o de Detroit.

Brown não esconde a sua antipatia para com os democratas e em particular para a adversária de Trump. "Hillary não apareceu durante grande parte da campanha e quando aparecia era para visitar áreas ricas nas quais os seus apoiantes tinham de pagar cinco mil dólares. A sua mensagem de defesa de um governo maior e os insultos ao povo americano, chamando-os deploráveis, homofóbicos, racistas, etc... não caíram bem não só junto dos republicanos, mas também em muitos democratas e independentes que estavam indecisos."

O editor da página de opinião do The Detroit News, Nolan Finley, afirma que mais do que uma vitória de Trump, o que aconteceu foi uma derrota de Clinton. "Não vejo que a vitória aqui tenha necessariamente sido causada por uma onda de Trump. Sem dúvida que os seus apoiantes fizeram uma campanha forte e foram entusiastas, mas ele teve menos votos no Michigan do que Mitt Romney quando concorreu com Barack Obama, e no entanto perdeu o estado." Para o editorialista do diário fundado em 1873, a razão pela qual Donald Trump ganhou o estado foi Hillary Clinton "não ter conseguido entusiasmar os eleitores, em especial os eleitores das minorias de Detroit, que ficaram em casa. Houve uma baixa participação dos democratas".

Juntando as peças: fraca adesão de democratas, mobilização de republicanos e voto captado aos independentes. E a classe trabalhadora (os denominados blue collar, colarinhos azuis)? "Em grande parte, sim, a vitória atribui-se aos trabalhadores", diz Finley. "Pela primeira vez veem as coisas a serem feitas. A reforma fiscal foi feita mais para eles do que para outros: estão a receber prémios, estão de volta ao trabalho, o desemprego está a baixar. O trabalhador de colarinho azul tem de estar bastante satisfeito com a reforma de Trump", crê Patterson. "A malta dos bastidores já não se safa mais", sentencia, em referência aos grandes interesses estabelecidos em Washington.

Nolan Finley, jornalista há mais de quatro décadas, dá um exemplo de como muitos eleitores daquele estado ficaram ressentidos com os mandatos anteriores na Casa Branca. "A maior parte das pessoas que trabalha na indústria automóvel e de componentes tinha seguros pagos pelo empregador. Quando o Obamacare começou a funcionar os prémios dispararam. Em vez de terem uma cobertura quase completa, os trabalhadores passaram a ter de pagar milhares a mais, além do próprio prémio. O custo médio de um seguro individual ficou na ordem dos 18 mil dólares. É uma fatia enorme do orçamento familiar. As pessoas deixaram de poder usar os seguros devido aos copagamentos e franquias serem tão elevados. Era algo que funcionava para mais de 80% da América. Para tentar ajudar os outros 15% deixou de funcionar para todos."

O editor do Detroit News levanta ainda outros motivos que levaram a um sentimento de raiva perante o establishment. "O partido democrata é mais favorável à costa leste e à costa oeste e não prestou grande atenção às pessoas que vivem no meio. Essas pessoas também têm voz e sentiram que estavam a gozar com os seus valores, que estavam a ser menorizados pela sua fé e marginalizados pelo que gostam de fazer, como os proprietários de armas ou caçadores. As pessoas estavam a ser forçadas a engolir mudanças. A agenda radical que os democratas levaram por diante levou a uma reação."

Tempestade mediática

O The Detroit News é um jornal republicano e conservador e, segundo a tradição da imprensa anglo-saxónica, declarou qual o candidato a apoiar. Pela primeira vez na sua história centenária, o diário apoiou um candidato de outro partido que não o republicano (o libertário Gary Johnson, que obteve 3,6% no Michigan). "Não apoiámos Trump devido ao seu comportamento errático. Mas após ter sido eleito o nosso compromisso foi o de apoiar as coisas em que concordamos e opormo-nos às restantes. Ao contrário dos media no geral, que se opõem a tudo", critica.

A republicana Jodie Brown também atribui responsabilidades à comunicação social. "Os principais media, ao falharem as notícias e as informações reais escondem tudo que possa ter sido notável. Odeiam Trump 24 horas por dia, sete dias por semana. Se perguntar aos media qual foi pior momento de Trump, vão responder o dia em que ele tomou posse. Isto acaba por afastar as pessoas e, em consequência, obriga-as a escolher lados."

Bobby Burton, empresário afro-americano residente em Southfield (Oakland), e com um negócio na baixa de Detroit, escolheu o outro lado. "Vivem-se tempos dececionantes neste país. Viu-se na campanha de Trump uma enorme polarização. As pessoas já não podem falar de política. O único consenso é o de que queremos levar o país para a frente. Um lado não quer ouvir o outro. Não é tanto esquerda contra direita, ou democratas contra republicanos, é mais sobre o rumo do país e sobre quem tem acesso ao quê."

O papel dos meios de comunicação social é também motivo de crítica de Brooks Patterson. "Trump tem-se batido contra uma tempestade de críticas injustas pelos media do meu país", martela. "E no entanto ele tem prevalecido em questões muito importantes. Para mim o seu maior feito foi a renovação do código fiscal, há muito por concretizar, e veja o que fez à economia. A economia local explodiu e com isso a economia nacional". Finley, por sua vez, acrescenta à reforma fiscal a desregulação às "coisas boas para a economia". Já o democrata Mark Hackel diz que "ainda não se sentiu o impacto desta administração nem o que poderão vir a fazer".

Facto é que Trump comemora o primeiro aniversário na Casa Branca com os indicadores da economia em alta e com o desemprego em 4,1%, a percentagem mais baixa desde 2001.

"Neste ponto da presidência" - analisa Jodie Brown - "está a tentar manter as suas promessas de campanha para o povo americano que votou nele. Eu diria que a sua base de apoiantes ainda está bastante feliz com a decisão de ter votado num um homem que não é outro político falso. É um homem que tem as suas falhas, é duro, diz o que pensa e pensa o que diz, ainda que de maneira pouco eloquente."

Há outra grande vitória do presidente, segundo o governante dos mais de 800 mil cidadãos de Oakland, a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal "e a forma tão rápida como o fez". A conclusão de Patterson: "Ele é a antítese do que o partido democrata representa em Washington. Foi um trabalho excecional neste primeiro ano."

Já sobre o futuro não há tantas certezas. O ano é de eleições a meio do mandato (é escolhido um terço do Senado e a totalidade da Câmara dos Representantes). "Os democratas tomaram a decisão de não apoiar nada, mesmo que seja para o bem do país. Vai ser um ano difícil. Se Trump perder um dos ramos do Congresso não vai conseguir fazer muito", projeta Finley.

O executive de Macomb puxa dos galões de antigo xerife e antevê "um potencial problema da administração com a lei", ou seja, que Trump pode acabar destituído. No entanto, se Donald Trump se recandidatar, "um candidato diferente pelos democratas pode derrotá-lo em Macomb", afirma Hackel, que ambiciona candidatar-se a governador do Michigan.

"Se ele voltar a concorrer vai voltar a ter os mesmos resultados em sítios como Macomb. A diferença é que muitas pessoas que se opõem a quem ele é irão votar. Não acredito que volte a vencer o Michigan, mas também não vai perder votos", prevê Nolan Finley.

"Os democratas vão descobrir que os eleitores não são cegos e que têm mais dinheiro nos bolsos", avisa Patterson.

No plano da personalidade do presidente, o editorialista fala em nome do seu jornal, que ocupa um edifício novo da baixa de Detroit: "Desejamos que tenha mais decoro, que seja menos divisivo e que largue o raio do Twitter! Pensamos que ele é o seu próprio pior inimigo. Após fazer alguma coisa positiva, segue-se outra insultuosa que estraga os ganhos. Por exemplo, quando teve um acesso egomaníaco e disse que era um génio. Encontra sempre uma forma de ser ele o assunto e não os temas concretos em que está a trabalhar", lamenta.

E Jodie Brown, como olha de Westland para o futuro? "Se eu tivesse de adivinhar, diria que desde que mantenha o melhor interesse do povo americano no coração, Trump vai "fazer a América grande de novo"."

Enviado especial a Detroit

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