"No imaginário dos marroquinos a colonização portuguesa nunca foi uma colonização arrogante"

Na apresentação de <em>Marocains et Portugais - Regards Croisés</em> da autoria do professor Driss Guerraoui, membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia do Reino de Marrocos, o DN conversou com o sociólogo sobre as relações entre os dois países cuja vizinhança se faz por mar, mas também sobre os desafios atuais para Marrocos.
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Há uma grande proximidade geográfica entre Marrocos e Portugal, pois Lisboa é a capital mais próxima de Rabat. Resume-se a relação entre os dois países a apenas uma questão geográfica ou há também uma proximidade ao nível cultural entre os dois povos, mesmo com as diferenças religiosas pronunciadas que existem entre o Sul da Europa e o Norte de África?
Existe um paradoxo nas relações entre Marrocos e Portugal. Por um lado temos dois países geograficamente próximos, dois países que têm uma herança comum, onde há complementaridade, mas, ao mesmo tempo, as relações não são muito desenvolvidas, quer se trate de trocas humanas, comerciais ou de investimentos cruzados. Isto interpela qualquer observador objetivo da realidade das relações entre Marrocos e Portugal. Interrogamo-nos neste livro sobre as razões reais desta situação, tendo em conta que além da geografia e da história e de diferentes possibilidades de complementaridade, existe uma vontade política tanto de Portugal como de Marrocos de desenvolver agora essas relações. Mais do que isso, o estudo que realizámos mostrou que 91,5% dos marroquinos gostam de Portugal e dos portugueses. Na minha opinião é, portanto, paradoxal que perante estas vantagens e a amizade entre Marrocos e Portugal, as relações de cooperação não sejam muito desenvolvidas comparativamente ao potencial que existe. É verdade que desde os últimos dez anos constatamos que há uma evolução positiva em relação aos investimentos portugueses em Marrocos, às trocas comerciais, humanas, designadamente turismo, migrações e estudantes marroquinos em Portugal, mas o ritmo não está à altura das potencialidades que existem entre os dois países.

Ao ouvir as suas palavras percebo, com alguma surpresa, que a História comum dos dois países não é um problema para os marroquinos...
Não.

Para os portugueses, o período de domínio do islão é uma época mítica da nossa História, que durou até ao século XIII, e está pois muito longínqua, mas para os marroquinos a colonização portuguesa, mais recente, é mesmo assim vista de forma mais positiva do que a espanhola e a francesa.
Sem dúvida, sobretudo do ponto de vista dos marroquinos.

Como se explica que em Marrocos a presença portuguesa, que incluiu a conquista de cidades com Ceuta ou Tânger, seja vista de forma diferente das outras colonizações europeias?
Porque, simplesmente, no imaginário dos marroquinos a colonização portuguesa nunca foi uma colonização arrogante, vingativa, mercantil, devastadora e destruidora, que nega a existência do outro. Isto está também ligado à conceção portuguesa da sua própria história colonial, que é uma conceção pacífica, serena, clarividente e reconciliada com a sua História. Tudo isto acrescido de uma apropriação por Portugal, com orgulho, da herança muçulmano-árabe. Isto traduz-se, neste caso, no comportamento do povo português com os outros povos e, designadamente, com o povo marroquino, o que faz com que os marroquinos tenham uma conceção positiva da presença portuguesa em Marrocos durante mais de três séculos e meio.

Portanto, mesmo o choque religioso - cristãos contra muçulmanos - é visto de uma forma idealista quando se fala de portugueses em Marrocos?
Penso que a questão religiosa não está integrada nesta imagem positiva que os marroquinos têm dos portugueses, porque nós achamos que o islão e o cristianismo têm o mesmo Deus e pregam os mesmos valores de solidariedade, tolerância, respeito pelo outro, vivência conjunta e, sobretudo de diálogo entre as civilizações, culturas, religiões e espiritualidade. Eu penso que a conceção portuguesa da religião aproxima-se da conceção marroquina da religião, no sentido em que é uma conceção pacífica, aberta e que se coaduna com os valores fundamentais do cristianismo e do islão. É uma compreensão positiva, pacífica e aberta ao futuro da concórdia e do entendimento entre todas as religiões do mundo e, em particular, entre o islão e o cristianismo.

Disse que a grande maioria dos marroquinos tem uma boa opinião de Portugal, historicamente há também relações positivas, mas, ao mesmo tempo, há um desconhecimento mútuo. Qual é a razão? Nós temos pouca promoção de Marrocos no nosso país, tirando os atrativos turísticos. Passa-se o mesmo lá?
Eu penso que não há uma tomada de consciência da importância do conhecimento mútuo para a construção de um futuro comum entre Portugal e Marrocos e para o maior desenvolvimento das nossas relações. Não se avalia a importância da História para construir o futuro e, consequentemente, não se ensina a história da presença portuguesa em Marrocos, tal como os portugueses também não ensinam a presença marroquina em Portugal. Creio que a educação, a debilidade das trocas humanas, o não se levar em linha de conta a importância da História para a construção das nossas relações económicas, políticas e outras faz com que, infelizmente, haja este défice de conhecimento por parte dos marroquinos e dos portugueses da sua herança comum.

O regime democrático português, que é muito recente, vai fazer 50 anos no próximo ano, pode ser um modelo para Marrocos? É possível para Marrocos, no seu esforço para se consolidar como um país democrático, aprender com a experiência portuguesa?
Sabe-se que os marroquinos, através de uma sondagem, têm uma conceção positiva do regime político português, pois na sua grande maioria avaliam o regime português como pluralista e democrático, e que é um modelo também para outros países, mesmo que os marroquinos tenham muitas vezes orgulho da sua própria experiência democrática. Apesar de avaliarem positivamente o modelo democrático português, os marroquinos acham também que têm a sua própria democracia, porque nós somos uma monarquia e vós sois uma república.

Há grandes similaridades entre Portugal e Marrocos - nós somos um país muito antigo, tal como vós; Marrocos evitou a conquista otomana, mesmo a colonização moderna europeia foi sobre a forma de protetorado. Qual é a força do sentimento de identidade nacional de Marrocos?
Penso que nós somos um dos mais antigos Estados nacionais na região. Somos um estado multissecular, são 14 séculos. É este enraizamento na História de Estado nacional, com uma monarquia popular, que tem uma legitimidade política, que faz com que o sistema político marroquino se inscreva na durabilidade, seja o cimento da unidade da nação e o garante da estabilidade e da perenidade que temos no Marrocos moderno. É isso que faz a diferença entre Marrocos de um lado e a Argélia, a Tunísia, a Líbia e outros regimes políticos na região arábica. Penso que é a especificidade do sistema político marroquino, trazida por uma monarquia popular que tem uma legitimidade política, junto da população do país, que faz com que Marrocos constitua, portanto, uma experiência única na região e que lhe dá a sua estabilidade e a sua perenidade no plano institucional.

Concorda com quem afirma que o islão e a modernidade fizeram uma combinação quase perfeita em Marrocos?
Exatamente, fez muito bem em sublinhar isso. A especificidade de Marrocos comparativamente a outras regiões do mundo é que conseguiu uma síntese inteligente entre democracia, modernidade e religião. Assim, essa capacidade de encontrar um equilíbrio inteligente entre o islão, a modernidade e a democracia deve-se ao estatuto particular do rei no sistema político marroquino. O rei é ao mesmo tempo o representante espiritual e temporal, enquanto chefe dos crentes, enquanto força política e instituição acima dos partidos e é também isso que constitui a especificidade do sistema político marroquino.

Pode dizer-se que o grande desafio para Marrocos no futuro próximo é a redução das desigualdades e também a melhoria da condição feminina. Também já há progressos nessas áreas?
Há três desafios extremamente importantes - a crise da escola, as desigualdades e a governança. Se os marroquinos conseguirem encontrar uma resposta para a crise da escola, ou seja, formar elites e competências e produzir inovações, por um lado, e assim reduzir as desigualdades relativamente às classes sociais, entre as regiões e entre os géneros, e se conseguir estabelecer uma governança responsável e participativa, Marrocos poderá, nessa altura, ganhar a batalha da democracia e do desenvolvimento.

Há muitos jovens marroquinos a emigrarem para a Europa, ainda vista como o eldorado. Pensa que uma alternativa para acelerar o desenvolvimento de Marrocos poderá ser uma associação mais próxima com a União Europeia?
Eu creio que Marrocos tomou consciência de que a resolução desse desafio da migração passa por duas coisas essenciais e de realização conjunta - a democracia e o desenvolvimento. Evidentemente que Marrocos não vive numa ilha isolada, o país tem relações internacionais. Penso que a nova visão geoestratégica de Marrocos é a África e só concebe essa ligação reforçada à Europa no caso de uma grande zona que inclua a Europa, África e o mundo árabe.

leonidio.ferreira@dn.pt

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