No GUIdance, o tempo dos corpos que dançam é o nosso tempo

O festival que arranca o ano da dança chama-se GUIdance e mistura tempos e geografias num cartaz intenso que assesta o foco em Rui Horta, faz regressar Marlene Monteiro Freitas e chama Wayne McGregor para o início.
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Há uma linha do tempo no desenho da programação do GUIdance 2018 que convoca saberes e experiências diversas para pensar uma mesma interrogação - como é que a história que passa pelos corpos que dançam pode ajudar a criar futuros? Chamadas a responder, obras de nomes fundamentais na dança contemporânea, nacionais e internacionais, a começar por Wayne McGregor, que regressa a Guimarães (depois da apresentação de Atomos, em 2016) para fazer arrancar esta edição do festival com Autobiography (Centro Cultural Vila Flor - CCVF -, 1 de fevereiro, 21.30).

O exuberante criador britânico (que assinou obras experimentais, coreografou musicais e desfiles de moda e colaborou em experiências tão díspares como os filmes de Harry Potter ou os concertos dos White Stripes) parte de algo tão pessoal como o seu próprio ADN para criar um trabalho em que afirma a importância do corpo enquanto "tecnologia de ponta" (palavras suas, em entrevista à BBC), multiplicando essa evidência em palco.

Explorar o arquivo vivo que é um corpo criativo para lançar pistas para o que há de vir é, há muito, uma linha de força no pensamento de Rui Horta, coreógrafo em destaque nesta edição do festival, que se prolonga até 10 de fevereiro. Regressa, a solo, com Vespa (Centro Internacional das Artes José de Guimarães, 7 fev., 21.30) ao lugar onde se estreou - no dia dos seus 60 anos, em 2017 - e apresenta uma nova criação em estreia absoluta, Humanário (CCVF, 3 fev., 21.30), que integra 40 intérpretes amadores e foi criada em conjunto com o maestro Tiago Simães.

Vespa é uma questão do criador consigo próprio e, ao mesmo tempo, universal, tanto na forma como se põe em causa como no reconhecimento de inquietações que nos assaltam a todos; a nova criação é uma obra a muitas vozes sobre a diversidade e o que nos é comum, numa peça transversal à comunidade e à região de Guimarães. "No Humanário procurei um encontro com pessoas, com a comunidade - o outro, aquele que me diz algo e que eu quero descobrir. Fiz uma audição com um único mote: encontrar pessoas que soubessem ou quisessem cantar e não tivessem receio de estar em cena. Por isso o meu cúmplice neste projeto foi um jovem maestro, o Tiago Simães. Encontrei um grupo totalmente inesperado, muito jovem e integrando desde amadores a profissionais", explica Rui Horta. E sublinha: "Só podes fazer este tipo de obras quando estás muito próximo e sintonizado com as estruturas que te acolhem. E se não tiver contornos de celebração, não vale a pena."

Como em anos anteriores sucedeu com Miguel Moreira ou Tânia Carvalho, criadores cuja obra esteve em destaque no GUIdance, a ligação ao território é fundamental e a celebração é palavra de ordem. "Rui Horta é um coreógrafo com uma ligação umbilical forte à cidade - apresentou quase todas as peças em Guimarães - e a obra que vai estrear nesta edição começou a ser pensada a partir deste lugar onde o festival se compõe. Além disso, é um exemplo de reinvenção enquanto criador numa edição dedicada à ideia de criação de futuros. Redescobrir determinados momentos de criação na linha de tempo dos autores é essencial. Importa reencontrar uma certa essência, combater a vertigem e a obsessão do novo pelo novo e alinhar a velocidade de vivência às obras que o programa propõe. É igualmente fundamental para o festival tentar recapturar peças que por razões várias não tenham sido celebradas tanto quanto devem", clarifica Rui Torrinha, o diretor do festival que chamou à programação deste ano obras essenciais de criadores que queremos revisitar.

Em O Limpo e o Sujo, (CCVF, 2 fev., 21.30), Vera Mantero, Francisco Rolo e Elizabete Francisca criam uma ecologia de si próprios que é um trabalho coreográfico, uma dança. Essa mesma prática de pensamento profundo num corpo pujante pulsa em Da Insaciabilidade no Caso ou ao Mesmo Tempo Um Milagre (CIAJG, 3 fev., 18.30), que Joana von Mayer Trindade & Hugo Calhim Cristóvão criaram a partir de Almada Negreiros e de um complexo processo de construção, envolvendo debates e workshops, e irrompe em Jaguar (CCVF, 9 fev., 21.30), de Marlene Monteiro Freitas em colaboração com Andreas Merk, descrita como "um cruzamento de inspirações que brotam muitas vezes sem controlo e que fazem da arte o que ela deve ser". Oportunidade rara para ver em palco a coreógrafa recentemente distinguida com o Leão de Prata da Bienal de Veneza, junto com um dos seus cúmplices mais antigos e carismáticos, poderosos criadores de mundos.

Num lugar imaginário vive também a peça de Patricia Apergi Cementary (CCVF, 8 fev., 21.30), criadora que esteve em residência artística no Centro de Criação de Candoso (Guimarães) e já se apresentou no festival em 2015, e aqui continua a explorar um tópico central na sua obra, a cidade como lugar de caos. A coreógrafa grega não está sozinha. Titans (CIAJG, 10 fev., 18.30) assinala a estreia em Portugal de Euripides Laskaridis, compatriota e criador extraordinário que trabalha uma ficção exuberante perante a desolação do presente. "O olhar sobre a Grécia é o intensificar de uma intenção de descoberta de novas geografias dentro do festival", lembra Rui Torrinha. "Decidimos investir num país do Sul, para perceber como pode a arte resistir em condições de extrema fragilidade e mesmo assim mostrar-se grandiosa na sua diversidade."

O GUIdance termina a 10 de fevereiro com um regresso a não perder, o da companhia belga Peeping Tom com Vader (Pai) (CCVF, 10 fev., 21.30), parte de uma trilogia em torno da família (de que já vimos Mãe).

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