"No cinema não há verdade, é tudo ficção"

Vencedor de uma Palma de Ouro em Cannes, o tailandês Apichatpong Weerasethakul regressa às salas nacionais com "Cemitério do Esplendor".
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Quando começamos a ver Cemitério do Esplendor, que nesta quinta-feira se estreou nas salas portuguesas, com aqueles soldados que dormem constantemente nas camas de um hospital, sentimo-nos num ambiente realista. Mas a pouco e pouco as coisas vão mudando...

É verdade, há elementos não realistas que vão afetando a perceção do mundo pelas personagens, ao mesmo tempo refletindo os meus sentimentos atuais em relação ao meu país - por vezes, a situação é tão absurda que somos levados a questionar o que está realmente a acontecer. Encontrar outra realidade parece ser o único caminho possível: daí que o sono e os sonhos sejam um tema importante neste filme.

Como uma fuga?

Como uma fuga ou, talvez melhor, um refúgio.

E porque é que a situação é absurda?

Sobretudo porque as condições de vida se tornaram muito mais duras depois da chegada dos militares ao poder, há dois anos - há censura, prisões e pessoas a sair do país.

Como é que situa este seu filme em tal situação?

Não sou um cineasta político. Em qualquer caso, Cemitério do Esplendor é também um reflexo dessa situação. Digamos que é cada vez mais difícil fazer filmes honestos sem entrarmos em algum processo de autocensura. Aqui, posso dizer que me autocensurei e tentei encontrar uma linguagem diferente - digamos que é o máximo que quero fazer face à situação do país.

Há muitos filmes tailandeses a refletir a atual situação?

Não. A noção dominante de cinema na Tailândia não está associada à vida quotidiana, mas a uma dimensão de pura fantasia.

No caso de Cemitério do Esplendor, a introdução de elementos não realistas não exclui uma dimensão quase documental, em particular na relação com os lugares que filma.

Tenho, de facto, uma relação forte com os lugares, até porque, a maior parte das vezes, os meus filmes começam com um lugar que encerra determinadas memórias - e desenvolvem-se a partir daí. As histórias vêm depois.

Esse lugar de origem é natural ou construído?

Em princípio, é um lugar que existe, como é o caso da cidade em que cresci e aparece no filme. Vivi dez anos em Banguecoque chegou-me - regressei à natureza.

Em Cemitério do Esplendor, e nos seus filmes em geral, as mulheres parecem estar mais ligadas a uma certa verdade, a qualquer coisa de primordial.

É verdade! Desde logo porque esta atriz com quem já trabalho há mais de dez anos, Jenjira Pongpas, se tornou uma espécie de figura materna. Ao mesmo tempo, sendo uma pessoa gay, creio que tenho um lado feminino, um pouco híbrido. Acredito que, regra geral, o feminino é mais sensível ao mundo espiritual. Aliás, creio que é por isso que raras vezes uso música nos meus filmes - os sons vêm do meio ambiente.

São sons diretos ou produzidos mais tarde? Ou o resultado final é uma combinação das duas situações?

É uma combinação. Aplico o direto o mais que posso, mas o filme é também sobre a ilusão. Procuro intensificar as sensações, até porque estou sempre interessado em questionar o que é a realidade - no cinema não há verdade, é tudo ficção.

Com alguma relação com a verdade, apesar de tudo.

No sentido de nos alertar para a verdade.

Uma verdade material ou espiritual?

Material, em princípio. Mas o mundo material sensibiliza-nos para o espiritual. Tento não impor nada aos espectadores, procurando encontrar um equilíbrio entre uma coisa e outra.

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