Conhecem-se pelo nome, às vezes até pela voz. No lisboeta bairro da Graça, onde as belas vistas da cidade trouxeram uma maré de turistas nos tempos anteriores à pandemia, já se viu de tudo um pouco: guerras, euforias e disforias, crises económicas várias, despejos de moradores da vida inteira e, finalmente, o confinamento ditado pela emergência sanitária. Mas a aposta dos comerciantes é sempre a mesma: a fidelização do cliente que volta sempre, apesar da subida vertiginosa das rendas de casa ter atirado muitos para "fora de pé". Quem o diz é Anita Braz, proprietária da drogaria/perfumaria, situada na Rua Senhora do Monte, unanimemente apontada como uma das referências comerciais do bairro mas confirmam-no ainda Elisabete Ferreira, com 60 anos ao balcão da papelaria Havaneza Bandeira (Largo da Graça) ou Gisléne Carvalho, empregada e rosto da Loja Portugueza da Graça desde 2008. Mas resistir quando as ruas ficaram desertas e o elétrico 28 começou a passar vazio não foi tarefa fácil..Comecemos esta rota de resistentes pela loja mais antiga: no Largo da Graça, a Havaneza Bandeira tem as portas abertas há 84 anos. Vende jornais, livros, tabaco, jogo, material escolar, souvenirs da cidade e Elisabete Ferreira, a proprietária, afilhada dos fundadores, está aqui há mais de seis décadas. Já viu de tudo, mas a idade não lhe retira vivacidade ou entusiasmo. Quando falamos sobre a nova periodicidade diária do DN, rejubila, ela que se recorda de o vender com tiragens hoje inalcançáveis para qualquer jornal. "O Largo da Graça era uma animação à espera das notícias. Lembro-me, por exemplo, da altura da Volta a Portugal em bicicleta. Púnhamos ali à porta um placard com os vencedores da etapa, o que despertava grande interesse." Mas os tempos não têm corrido de feição.."Estivemos sempre abertos uma vez que vendemos jornais e tabaco mas depois de perdermos tantos clientes de anos, obrigados a ir morar para longe, perdemos também os turistas. Posso-lhe dizer que quando se iniciou o confinamento tínhamos feito um investimento de aproximadamente 10 mil euros em material dirigido ao cliente estrangeiro e agora temo-lo parado em armazém." Ainda assim, Elisabete sentiu uma "certa reanimação no Verão e também com o Natal." Aderente à iniciativa da Junta de Freguesia de São Vicente, que substituiu a oferta de cabazes por vales de compras (ver caixa), acredita que esta foi uma boa maneira de apoiar o comércio local. Veremos como corre o mês de janeiro, naturalmente mais "fraco"....Alguns números mais abaixo está a Loja Portugueza da Graça, fundada em 2007. Vende artigos de drogaria, mas também souvenirs e colecionáveis. Gisléne Carvalho, há 13 anos ao balcão, gere com graciosidade as perguntas de quem está dentro da loja e de quem vai a passar no que deve ser um dos passeios mais exíguos da cidade. Conhece-os quase todos, admite. "Embora tenhamos alguma procura de estrangeiros, a maioria dos clientes continuam a ser os moradores do bairro." Assim continuou após a reabertura em abril: "Passámos a ter álcool gel, luvas, material desinfetante e isso tem naturalmente muita procura." E o Natal, como correu? "Não tem comparação com os Natais anteriores, claro, até porque nos fazem muita falta os sábados à tarde, mas, ainda assim, não tem sido mau..." E acrescenta: "Temos de dar o nosso contributo para o combate à doença.".Atravessamos a rua e viramos à esquerda na Rua Senhora do Monte, que sobe para o miradouro do mesmo nome. Iniciada a subida, lá está há 40 anos, Anita, drogaria e perfumaria. Em poucos minutos apercebemo-nos que aqueles escassos metros de loja são, afinal, um dos polos dinamizadores do bairro e que, apesar das dificuldades trazidas pelas condicionantes sanitárias, a dona da loja, Anita Braz, não trocaria esta vida por coisa alguma. Mora ali bem perto, no popular bairro Estrela D"Ouro, encomendado, no princípio do século XX, pelo industrial da confeitaria Agapito Serra Fernandes ao arquiteto Norte Júnior para habitação dos seus operários, e não se imagina noutro local. "Tivemos de nos reajustar à realidade. Nunca fechámos a porta porque começámos a vender álcool gel, máscaras, luvas, lixívias e materiais desinfetantes. Nos primeiros tempos só vendíamos isso, as pessoas nem olhavam para outras coisas. Ainda me lembro da alegria que foi vender um perfume, pela primeira vez em semanas, a alguém que queria comprar um presente." Este Natal, já se sabe, não é como os outros, mas também não é a primeira crise a atingir o comércio local, sublinha Anita. "Tivemos de enfrentar a perda de clientes muito antigos e fiéis, obrigados a deixar as suas casas por causa da subida das rendas, mas também enfrentamos a concorrência desleal das grandes superfícies que praticam preços impossíveis para nós. E isso não começou com a pandemia.".Como dar a volta à questão, e sobreviver? "Com simpatia e disponibilidade. Com os clientes, antes de mais, o que justifica que hoje tenhamos pessoas que vêm de longe porque foram criadas aqui e esta era a loja onde vinham os pais, mas também com os outros comerciantes, com quem temos uma relação de entreajuda e não de competição. Conhecemo-nos todos, somos parte das vidas uns dos outros." A filha de Anita e os dois netos, que acompanham a conversa, confirmam e apontam o exemplo que têm em casa: "O meu irmão, Ângelo, começou a tocar ali na Tasca do Jaime (restaurante vizinho, na Rua da Graça, onde habitualmente se canta e toca o fado) e dali foi para o concurso Bravo, Bravíssimo e A Grande Noite do Fado, que ganhou na categoria juvenis. Hoje tem 31 anos e já acompanhou Carlos do Carmo, António Zambujo, Carminho, Ana Moura e Mariza." Uma história de sucesso que toda a Graça conhece..Salvar o comércio local em conjuntura tão hostil é o mote de várias iniciativas desenvolvidas um pouco por todo o país. Na Graça coube à junta de freguesia de São Vicente substituir os tradicionais cabazes de Natal oferecidos às famílias em situação de precariedade económica por vales descontáveis nas lojas aderentes do bairro. Paralelamente a estas medidas locais, a Câmara Municipal de Lisboa criou um programa de apoio económico e social destinado a proteger os setores económicos mais atingidos e mais vulneráveis, quer pela quebra no setor do turismo, quer pela diminuição do número de pessoas que diariamente entram em Lisboa para trabalhar. Assim sendo, foi anunciado um apoio global de 20 milhões de euros, a fundo perdido, destinado às empresas e empresários em nome individual do setor do Comércio e da Restauração da cidade de Lisboa, sem dívidas às Finanças, Segurança Social e CML, com volume negócios até 500 mil euros (em 2019) e quebras de faturação, entre janeiro e setembro de 2020, acima de 25%..Mas também há particulares empenhados nesta causa. A Associação Living Melody, composta por três amigos (Rita Almeida, André Noronha e João Almeida) para o desenvolvimento de projetos, sem fins lucrativos, para a igualdade, desenvolvimento sustentável e altruísmo, desafia-nos a comprar bens e serviços no comércio local e a publicar "uma selfie nas redes sociais com o nome do estabelecimento visível, quer seja no interior ou exterior, com ou sem o comerciante (que muitas vezes é um vizinho ou até amigo chegado)", com o hashtag #euescolholocal. Como aliciante extra, os participantes habilitam-se a ganhar um cabaz de produtos tradicionais alentejanos. Para mais informações, ver a página da associação no instagram: @livingmelody.pt.