No Alentejo, clínicos gerais mantêm a urgência de pediatria aberta. "É como ir ao mecânico ali à igreja"
No dia oito de outubro, a filha de V. G. deu uma queda em casa e bateu com a cabeça, por volta das 23.30. "Contactei a Linha Saúde 24 e o enfermeiro indicou-me que deveria ir para o hospital", conta o pai ao DN. Como vivem em Melides, concelho de Grândola, dirigiram-se ao Hospital do Litoral Alentejano, que fica em Santiago do Cacém - uma das quatro unidades de saúde com serviço de urgência pediátrica no Alentejo. "Mas não havia nenhum médico na urgência pediátrica nessa noite. Fomos atendidos por um enfermeiro que nos disse, a nós e aos outros pais, para irmos ao Hospital de Setúbal".
São cerca de cem quilómetros de distância até ao Hospital de São Bernardo. A outra hipótese seria o Hospital de Beja, que fica a menos dez quilómetros da opção anterior. E é preciso de facto conhecer as distâncias, porque este episódio não é um caso isolado. O Hospital de Santiago do Cacém tem apenas um pediatra, em idade de reforma, e um contrato de prestação de serviços com outro pediatra, segundo o presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, Alexandre Valentim Lourenço. "A escala do serviço de urgência de pediatria, na grande maioria dos dias, é preenchida por clínicos gerais e médicos sem especialidade. Não há pediatras presentes 24 horas na urgência ou no serviço", diz o médico.
A Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo confirma, ao DN, a existência de "dois pediatras no serviço" e que "o atendimento de crianças na urgência é feito por médicos não pediatras com treino no atendimento em idade pediátrica". Menciona ainda que têm sido abertos concursos de recrutamento, mas que as "vagas não tiveram candidatos".
Esta não é a primeira vez que V. G. tem de se deslocar às urgências de pediatria do hospital de Santiago do Cacém, mas diz ter sido sempre atendido por um médico de medicina geral. "[As crianças] são atendidas por colegas que, por muito bons que sejam, não têm a especialidade. Isto é como ir ao mecânico ali à igreja. O padre pode fazer uma reza, mas de facto não é mecânico", afirma Armindo Ribeiro, médico neste hospital e membro do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).
"A experiência é má. Não se consegue assegurar a qualidade que as pessoas deviam ter quando vêm ao serviço de urgência e põe-se em causa a segurança do próprio médico. É uma grande responsabilidade, porque não temos apoio para casos muito difíceis. São os internistas, os anestesistas que ajudam e, eventualmente, se o pediatra do hospital estiver pela zona pode vir aqui dar-nos uma ajuda", reforça Armindo Ribeiro.
Além da ausência de médicos dos quadros, no Alentejo há ainda dificuldade em contratar médicos tarefeiros. "Os valores [pagos] não são tão competitivos e ninguém quer vir para cá", diz o médico do Hospital do Litoral Alentejano, unidade que dá resposta aos concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém, Sines e Odemira.
A população alentejana é envelhecida. Os concelhos da região registam alguns dos números mais baixos de nascimentos do país, só sendo superados pelo Algarve. Das 87 020 crianças que nasceram em Portugal em 2018, segundo a Pordata, apenas 5383 são alentejanas.
Com idade até aos 14 anos, existem 89 315 crianças no Alentejo. Mesmo assim, o número de pediatras na região - 38 de acordo com o relatório social do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde de 2018 - "é muito baixo e não reflete as dificuldades reais. A idade destes pediatras é avançada, pelo que muitos podem não fazer serviço de urgência, e estão dispersos por quatro hospitais [Portalegre, Évora, Beja e Santiago do Cacém]. Tendo três deles necessidade de duplicação de pediatras por prestarem trabalho suplementar no apoio aos partos e exigir simultaneamente amplas e variadas competências com necessidades de diferenciação (em especial no hospital de Évora que tem mais valências e ocupa uma região mais central)", indica Valentim Lourenço.
A falta de pediatras sente-se mesmo no maior hospital do distrito. Em março do ano passado, os pediatras do Hospital do Espírito Santo de Évora alertavam para o risco de "rotura" da urgência da especialidade.
O problema não é só a quantidade de urgências ou de internamentos, que na maioria dos casos são baixos, segundo o presidente do conselho regional da Ordem dos Médicos do Sul. É, sim, uma questão de acessibilidade em tempo útil. "A presença de um serviço de urgência aberto é importante face à inexistência real de alternativas num raio de ação adequado. Os distritos de Portalegre, Évora e Beja podem ter atendimento pediátrico inferior em volume ao hospital de Almada, mas com uma área de cobertura imensamente maior e sem alternativa de outros hospitais (públicos ou privados)", refere Valentim Lourenço.
Na última semana, o Hospital Garcia de Orta, em Almada, encerrou três vezes a urgência de pediatria por falta de médicos que preenchessem a escala. Há sete pediatras disponíveis na unidade hospitalar, além de que apenas quatro ainda fazem urgência noturna. Também a urgência de Chaves está sem médico permanente durante a noite, a partir das 20.00 até às 08.00, avançava a agência Lusa recentemente.
No verão, a mesma notícia teve como principal protagonista o Hospital de Portimão, no Algarve, o que obrigou os pais a levarem os filhos até ao Hospital de Faro, a 60 quilómetros de distância.
A falta de pediatras percorre todo o território nacional, desde as cidades interiores - onde uma urgência fechada pode significar quilómetros de distância do tratamento - às grandes cidades - onde os centros hospitalares não conseguem dar resposta a milhares de cidadãos.
Estão a trabalhar atualmente no Serviço Nacional de Saúde 1099 pediatras, um número insuficiente, quer pelas escalas em branco quer pelo número de horas contratado a médicos tarefeiros. Só em 2019, já foram gastos pelo menos 822 mil euros em prestadores de serviços para a pediatria, segundo os dados disponíveis no Portal Base, onde são publicados os contratos públicos.