No 'Candeia' se velava a boémia mais castiça

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Era a cidade soturna e empedernida pouco dada a incursões nocturnas. Minguavam dinheiro e paradeiros, oferta limitada de entristecer a boemice mais ciosa.

No Candeia, Rua do Almada, um templo com pilares de casticismo. Ali se velavam noitadas reinadias; nos baixos da casa fado vadio e punhetas de bacalhau, enquanto, no piso cimeiro, rodopiavam pares de ocasião em tangos e pasos-dobles ao som da orquestra, então animada por trabalhadores dos transportes colectivos.

Ah, belo poiso de mulheres de idade avantajada, tal como a corpulência. Súbito, na pista levantava voo a célebre Clara Maria iluminada pelas Czardas do Monte. Cerveja e champanhe borbulhando pelas mesas povoadas de empregados de escritório, funcionários públicos, e muito cavalheiro de intocável respeitabilidade, mas...na província, sua terra natal. Na pausa dos folguedos toca de telefonar para casa avisando a consorte que as horas extraordinárias estavam para durar. E estavam, que bem extraordinárias eram elas. Tempos indíziveis de peripécias e desatinos, táxis em direcção às pensões com nome de flores.

Os mais metediços rumavam ao Cabana, Tamariz, Granada, Pérola Antiga, Pérola Negra, a primeira casa no burgo a apresentar sexo ao vivo. Outras vivências, outros códigos de conduta, também.

Para diferentes aconchegos, os estomacais, honra e glória para o Ginjal,o patrão tratando a clientela por senhor doutor. «Vai sarrrabulho?». E na esteira saíam, para gáudio dos borguistas, fígado de cebolada, tripas, alegres petiscares.

E que dizer da cervejaria Cuf, ao Palácio, do notável Tansmontano, comezainas imperecíveis, histórias aos molhos protagonizadas por gente de distintas funções, comerciantes e jornalistas que ali amesandavam, fechada a edição?

Os mais novatos, de bivaque da tropa ou rebocados pelo matulão do liceu, como quem não quer a coisa farejavam sexo onde a matrona tutelava as especialidades. «Meninas à sala» e radiantes, provocantes elas lá leiloavam o sustento aos famintos pelo chamado pecado da carne. Rua de Trás, dos Caldeireiros, Escura, Pensão S. Domingos, o 515, Casa Firmino, a Cármen, na Travessa das Almas, e olho atento à ronda policial - ramona, dizia-se.

Enfim, este o mapa forçosamente incompleto dos prazeres da noite. Raiava o dia, olheiras disfarçadas e chá de cidreira amaciando ressacas e azias domésticas.

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