Ninguém cativa o exclusivo de ideias mas é cortês reconhecer a autoria delas

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Exatamente há uma semana, o editorial do DN pronunciava-se sobre o tema da expulsão de magistrados portugueses que se encontravam a desempenhar funções em Timor-Leste. Escreveu o diretor: "A justiça é a base da soberania, não pode ser delegada e cortada às fatias, não se partilha, assume-se. Portugal mal suportou a intervenção da troika, ainda assim menos intrusiva. O ranger de dentes nas ruas foi permanente - e ainda bem - porque a nossa autonomia foi menorizada. É muito provável que as investigações em Díli estivessem a ser bem conduzidas e até que Timor viesse, a prazo, a ganhar com isso. A corrupção é um dos motivos que levam um Estado a falhar. Mas o governo, o nosso, não podia ter enviado magistrados portugueses para fazer trabalho que só pode ser feito - melhor ou pior - por timorenses. O país é deles. Podíamos ser consultores, não impulsionadores, não decisores. Portugal cometeu um erro diplomático, isto é, um erro político. É a política que define as relações entre nações independentes, ainda que próximas, não a justiça."

De imediato enviei uma mensagem a André Macedo, dando-lhe os parabéns pelo texto mais lúcido que até àquela data fora escrito para se perceber o que estava em causa em Timor-Leste. Esta correspondência ter-se-ia mantido nos limites de uma conversa privada, não se desse o caso de, nessa mesma noite, Luís Marques Mendes, em ponto prévio ao seu comentário, ter apresentado uma linha de raciocínio exatamente igual à de André Macedo. Na noite seguinte, lá estava Marcelo Rebelo de Sousa a comentar Timor, começando - adivinhem por onde - pela mesma crítica formulada no editorial do DN.

De comum temos que Luís Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa acham, tal como André Macedo, que uma cooperação de Portugal com Timor-Leste no campo da justiça não poderia envolver o envio de juristas portugueses para integrar um órgão de soberania timorense - e que a ideia se lhes tricotou nas células cinzentas por inspiração do pipilar de um passarinho, pelo latejar anormal de um mindinho, ou por um fogo-de-santelmo cerebral. Ainda têm de comum o só lerem o DN no dia seguinte ao das suas palestras para verem como saíram no jornal - e isso posso afirmá-lo, com segurança, tão ciosos são ambos das suas audiências e repercussões.

Isto pode ser uma questão de lana-caprina, já que ninguém tem o direito a reclamar para si o exclusivo de ideias e seria abusivo dizer que os telecomentadores vieram beber ao editorial do DN. Como é, aliás, despropositado dizer que Marcelo Rebelo de Sousa está atento ao que comenta Luís Marques Mendes, mesmo que certo dia tenha afirmado algo como "não digo como certos comentadores que António Costa só precisa fazer-se de morto até às eleições que as ganha" - e, por acaso, tal frase tenha sido proferida (estou a citar com as imprecisões da memória) por Luís Marques Mendes.

De facto, as ideias não têm autor exclusivo, a não ser que este registe a patente - o que ainda não parece possível. Mas não deixa de ser elegante e cortês que se refira a paternidade de quem primeiro a expendeu. Até para não sofrer o embaraço de um jornal, com um pouco mais de mau feitio, referir no texto - ou mesmo no título, nos mais atrevidos - que "fulano repetiu na TV a ideia ontem publicada no nosso editorial".

Mas porque insisto eu nesta - digamos - coincidência, para dizer o mínimo? Não pode ter-se dado o caso de os dois telecomentadores, genuinamente, haverem concluído, por mérito próprio, a mesma coisa que o diretor de um jornal? Claro que podem, mas há pormenores que ficam por explicar. O primeiro é que a cooperação judicial de Portugal com Timor já tem vários anos, mas menos do que o tempo que levam de comentadores televisivos. À luz do que disseram, em sintonia com André Macedo, foi um erro grave ter-se iniciado uma cooperação judicial oferecendo estrangeiros para um órgão de soberania de outro país. E só agora é que deram por isso?

Passou-lhes despercebido, a eles que são omnicomentadores, sabem de tudo, sobre tudo opinam: desde a terapia para bicos--de-papagaio até a quem disse o quê no segredo de uma reunião em Davos? Primam por estar bem documentados - iria dizer municiados, umas vezes mais, outras menos, segundo o barómetro sentimental dos responsáveis do seu partido, coincidentemente o mesmo, e do qual foram efémeros e malsucedidos líderes. Mas são um exemplo para os jornalistas e, à vista deles, faz sentido recriminar muitos profissionais da informação por serem preguiçosos e ignorantes. Não seria intrigante que pessoas tão bem informadas não lessem jornais?

Haveria um exercício fácil - mas meramente teórico - para deslindar a dúvida. Seria escrever em editorial uma crítica ao facto de Portugal não ter acautelado o poder de nomear um português para presidente e outro para primeiro-ministro de Timor-Leste. Ai não que não cairiam em cima deste jornal! E, a brincar, a brincar, repunham-se as coisas no seu devido lugar: os comentadores pronunciar--se-iam negativamente sobre a "bojarda" do jornal, mostrando que estão atentos ao que se publica - e o desastrado ministro dos Negócios Estrangeiros deixaria de couraçar a sua leviandade com "o que dizem os jornais".

Ingrato este destino dos jornais e jornalistas: os seus méritos e ideias são deglutidos por quem queira fazer brilharetes noutras paróquias, sem a gentileza de um agradecimento pela lembrança - e servem de escudo para a irresponsabilidade e falta de sentido de Estado de governantes. Afinal, como se viu esta semana, o ministro dos comentários estranhos foi declarar, à porta aberta, na Assembleia da República - quando se envereda pelo despudor fanfarrão, significa que se perdeu amor-próprio e o sentido de missão - que não revelara qualquer informação classificada, uma vez que os jornais já tinham dado notícia de que havia arrependidas entre os jihadistas portugueses do Estado Islâmico.

Ou seja: na entrevista que concedeu à Rádio Renascença, o ministro foi dar entoação de Estado - a notícias de jornais! Fez batota. Raquel Abecasis, a entrevistadora da Rádio Renascença, se tivesse percebido que o ministro lhe estava a impingir contrabando e não material legítimo, teria interrompido Sua Excelência para lhe dizer, com severa brandura: "Nós lemos os jornais. Quando temos dúvidas telefonamos para eles, porque somos oficiais do mesmo ofício. A ideia era entrevistarmos o ministro dos Negócios Estrangeiros e não o moleque que lhe prepara os recortes."

Quando um ministro dito dos Negócios Estrangeiros desce abaixo da criatividade de um malandrim pilha-galinhas apanhado em flagrante e resvala para uma deplorável incontinência verbal, é a hora de carpir: Sic transit a diplomacia portuguesa.

Com muitas aspas em diplomacia e ainda mais em portuguesa.

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